terça-feira, fevereiro 06, 2007

A mudança de paradigma na psicologia analítica:
“Jung e a complexidade: totalidade e multiplicidade”.

Elizabeth Cotta Mello
Mestre em Psicologia/Professora das FAMATh
(Obs minha: esse é um artigo de minha ex-professora de epistemologia que digitei no cpu)

Esse artigo se propõe apontar a concepção epistemológica da psicologia analítica dentro da proposta do novo paradigma para a psicologia clinica. Pretende-se ampliar trabalhar como de Sigelmann et alii (1989) sobre epistemologia, enfocando a psicologia analítica. Devido a abrangência, não se pretende esgotar o tema. Começaremos com um breve histórico da psicologia de C.G. Jung e a seguir discutiremos sua postura epistemologia dando continuidade a autores como Franz (1980), Silveira (1981).

C.G. Jung iniciou sua atividade psiquiátrica em 1900. Em 1905 trabalhou com o famoso psiquiatra Bleuler. Como comenta Nise da Silveira (1981), o interesse de ambos consistia em trazer esclarecimentos concernentes à estrutura psicológica dos fenômenos mentais ligados a psiquiatria descritiva. Recorreram a experimentos com associações verbais. As pesquisas realizadas apontaram para a existência de complexos afetivos não conscientes capazes de produzir manifestações involuntárias. Estabelecia-se, assim, um caminho experimental como via de acesso ao inconsciente. Freud tinha desenvolvido seu trabalho sobre sonhos onde chegava as mesmas conclusões. No ano de 1907 até 1912 surgiu uma estreita colaboração entre Freud e Jung. O rompimento com Freud veio em “função das diferenças existentes entre eles que se tornaram explícitas no livro ‘Metamofoses e símbolos da libido’ de 1912” (Silveira, Op.Cit). Jung retomava a definição etimológica de libido como energia psíquica em geral. Já se pronunciava também a cosmovisão de Jung no que tange a noção de totalidade e autonomia inconsciente.

Mediante estudos interdisciplinares das ciências e das tradições, em especial com a física, Jung percebeu que as ciências em geral, e não somente as humanidades, exigiam a formulação de uma linguagem contextualizada e de uma comunicação entre saberes (ciências, artes, tradições), unindo subjetividade e objetividade na relação cognoscente. Desde a década de 50 Jung e W. Pauli (prêmio Nobel de física de 1945), e outros estudiosos, trabalharam juntos nessa busca (Cf. Jung, 1984; Franz, in: Jung s/d; Jung & Pauli, 1952 apud Jaffé, 1990).

Cabe pontuar alguns pressupostos por onde a ciência se pautava para iniciarmos a discussão posterior sobre a postura epistemológica da psicologia analítica e o novo paradigma. Existiam, na ciência clássica, alguns pressupostos: 1. O princípio de universalidade: aceitação de verdades absolutas; 2. Princípio da causalidade linear, não existindo liberdade sem inovação; 3. o tempo como uma das dimensões do universo, onde tudo é reversível; 4. o complexo se reduzindo ao simples jogo de elementos (e o rompimento com a totalidade); 5. a preditibilidade total, onde nada poderia escapar ao controle “a autonomia não é concebível” (Morin, 1996: 331); 6. a objetividade total calcada em um realismo (separação absoluta entre o objeto e o sujeito), logo a eliminação da subjetividade; 7. a quantificação e a formalização que relegava o resta à ilusão. (Morin, 1996; Sigelmann, Op. Cit; Mello, Op. Cit).

A união dos princípios: universalidade e singularidade

Evitando enveredar por uma investigação de como se deu o processo de mudança e a crise da ciência, é fato que quanto mais os estudiosos se aprofundavam nas suas especialidades, mais tiveram que se confrontar com situações que lhes retiraram a segurança de leis permanentes. “A descontinuidade entrava pela porta principal – a da experiência científica” (Nicolescu apud Kuperman, 1993: 123): A ciência começava a se admitir local, paradoxal, por vezes.

Na psicologia analítica, apesar da validade de leis gerais, estas são consideradas insuficientes; o inconsciente assume “uma variedade e uma multiplicidade também muito grandes” (Jung, 1984: 114). O essencial é que “o inconsciente se transforma e provoca transformações” (Jung, 1963: 184).

Na clínica a singularidade de cada mensagem (texto-contexto-subtexto) e sua indicação de caminho residem essencialmente na vivência imprevisível da relação terapêutica: eis a arte que segue a teoria e a técnica. Para C.G. Jung o grande fator na psicoterapia é o terapeuta e a “combinação (al)química” que transforma ambos: “O que significa ele para mim” sempre perguntava-se Jung (1963: 123), acrescentando: “Se nada significa, não tenho um ponto de apoio”. As teorias e técnicas são inevitáveis, mas não passam de meios auxiliares da prática: precisamos estar prontos para “abandoná-las”.

2. Causalidade linear versos causalidade complexa e acausalidade

Para a psicologia de Jung a causalidade é fundamentalmente um “pré-conceito” da cultura ocidental, idéia que para Descartes é garantida pela noção de imutabilidade de Deus (Cf. Franz, 1980). A vida é basicamente acausal, mas a causalidade complexa não é descartada. Sobre ela, Morin (1996: 332), fala de uma “causalidade mútua inter-relacionada, com o princípio da endo-exocausalidade para os fenômenos de auto-organização”. Para C.G. Jung o inconsciente está em constante trabalho de revolver conteúdos, agrupá-los e reagrupá-los. Mais que isso, para ele, a libido energia, pode metamofosear-se, nos indivíduos, através da dialética entre consciência e inconsciente (Cf. Silveira, Op. Cit). O pensamento sincronístico¹ (Cf. Franz, 1985), por sua vez, não existe na seqüência de eventos, podendo ser entendido como pensamento cujo centro é o tempo. Se não há garantias de ordenação dos fenômenos, a causalidade perde o seu sentido.

3. Tempo e Espaço e Tempo-Espaço: as duas possibilidades

Por um lado, podemos falar da necessidade de “fazer intervir a história e o acontecimento em todas as descrições e explicações” (Morin, 1996: 332), por outro, intervém além dessa história particularizada dos fenômenos, o rompimento dessas categorias no inconsciente. A própria questão do tempo passa a ser problematizada. Para a nossa consciência “newtoniana” o tempo e o espaço estão separados, existindo linearidade, sendo essa uma vivência apenas do “nosso universo” conhecido. Porém, no inconsciente só existe virtualidade. A noção de espaço e tempo é posterior, é uma categoria da menta consciente. O constructo do inconsciente se enquadra nos pressupostos da física quântica e cosmologia moderna, e na perspectiva matemática atual onde a equação sobre o tempo decifrada por Godel é uma circulo (Cf. Novello, Op. Cit).

4. Totalidade hipercomplexa do real e a Multiplicidade

O cerne da psicologia analítica é tomar o real como totalidade, mesmo sabendo não ser possível abarcá-la (Cf. Nunes, 1989). Representações de totalidade aparecem em todas as expressões culturais (arte, mito, etc.) e são símbolos presentes em “todas as nossas representações inconscientes” (ibid, pág 217), como concluiu Jung (1986: 185): “o que se pode dizer com alguma certeza é que os símbolos apresentam um certo caráter de totalidade e por isso, presumivelmente, significam totalidade; via de regra, trata-se de símbolo de unificação, isto é, da conjunção de opostos”. Jung também chama a atenção para o significado da palavra “totalidade ou total” que é “tornar sagrado ou curar” (Jung, 1987: 159). A psicologia analítica propõe, então, respeitar a idéia que curar possui o sentido de convivência com o conflito e busca do todo harmônico. O objetivo da terapia seria, então, permitir a comunicação do sujeito com o seu sentido único de totalidade.

A maioria das doenças ou dificuldades humanas, sejam elas psíquicas e/ou físicas significam, dentro dessa visão, dissociações; a um só tempo, perda da harmonia e tentativa de reequilíbrio. A doença não é uma situação externa, isolada, é um caminho que permite a complexidade da conformação total. As narrativas mitológicas de heróis e heroínas, por exemplo, são modelos de receptividade para reações emocionais que solidificam o consciente, acolhendo os impulsos do inconsciente (Franz, 1996), logo, histórias de luta contra o adoecer. Os heróis cotidianos são aqueles que aceitam os desafios (possíveis) que se apresentam (Jung, 1981b), garantindo que a abundância do inconsciente não seja vertido em um vaso estreito demais (Franz, Op. Cit.).

5. Previsibilidade versus imprevisibilidade: a ilusão do controle absoluto

C.G. Jung foi contrário a idéia de fundar uma escola hegemônica em psicologia (1981a; Cf. Franz, 1980). Defendia a complexidade do psiquismo e a multiplicidade de facetas destes, logo, a convivência na co-disciplinaridade psicológica (divergente) e a parcial integração-comunicação dos conhecimentos (Jung, 1981a).

6. O retorno da totalidade múltipla: a união da subjetividade e a objetividade

Na prática, afirmava: “Cada vida é um desencadeamento psíquico que não se pode dominar, a não ser parcialmente. É muito difícil, por conseguinte, estabelecer um julgamento definitivo sobre si mesmo ou sobre a própria vida” (Jung, 1963: 53). Na atualidade os estudiosos trouxeram legitimidade para os questionamentos de Jung (1984; Cf. Amaral, 1995: 11; Morin, Op. Cit; Nicolescu, 1995; etc).

Discutir sobre objetividade e subjetividade é se dirigir às próprias condições de verdade, de conhecimento e inteligibilidade. Mais ainda, é falar do ser humano. Como Lyotard (1994) e Pedro (1996) concluímos: é a partir da invenção da ciência que se passa a falar em cultura como separada da natureza e do humano como separado do inumano, acontecimento inaugurado na modernidade (ibid).

A interação é uma proposta de ajustes e reajustes permanentes nesses sistemas vivos (Jung, s/d, 1981a; Morin 1996). Surge a noção complexa e paradoxal de sistema: onde o todo do sistema é maior que a soma das partes, de uma combinação viva e criativa e onde as partes, em suas multiplicidades inesgotáveis e dinâmicas, não se reduzem ao todo. Unidade e singularidade se interpenetram e se unem de forma imprescindível como a própria vida que pode ser esse todo e cada um de nós possamos ser manifestação única dessa amplitude. Na clínica: “O fato decisivo é que enquanto ser humano encontro-me diante de outro ser humano. A análise é um diálogo que tem necessidade de dois interlocutores” Jung (1963: 121).

O aspecto nefasto da subjetividade é a inconsciência, não em si mesma, mas a sua permanência. Nesse sentido, é lente que distorce e amplia o real, não é uma ilusão qualquer, mas outra realidade, como na paixão, é expressão de nossa totalidade desconhecida. Como observa Fernando Pessoa, com a síntese que a arte permite: “Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte”. As fantasias (projeções) podem ser utilizadas para narrar sobre nossas possibilidades de criatividade, logo é preparação para todas as relações inter e intrapsíquicas.

Jung, como coloca Siegelmann, “(...) conseguiu integrar (...) polaridades com o inconsciente coletivo” (1989, 28). O encontro entre subjetividade e objetividade transcende a psicologia, é uma tarefa de todo o processo de conhecimento. Como resume Heinsemberg (Apud Arent, 1958: 26), o homem ao examinar a natureza e o universo, em lugar de procurar e achar qualidades objetivas, encontra sua subjetividade (Cf. Franz in: Jung s/d; Jung, 1984).

7. A associação de noções complementares e antagônicas:

C.G. Jung e W. Pauli, a partir de contribuições mutuas, concluíram que o “(...) único ponto de vista aceitável parece ser o que reconhece, como mutuamente compatíveis, ambos os lados da mesma realidade – o quantitativo e o qualitativo, o físico e o psíquico – podendo abarcá-los simultaneamente” (Pauli & Jung apud Jaffé, 1990: 37). Jung recusa toda a quantificação como resposta última e única: “Jung considerava as afirmações estatísticas em psicologia e sociologia como (...) abstração mental” (Franz, 1992: 205).

Considerações Finais: Por um princípio de Complexidade

A psicologia de C. G. Jung é denominada psicologia complexa na Alemanha mas analítica no resto do mundo. É fundamental observar que o nome surgiu por pretender se ocupar dos fenômenos psíquicos em sua complexidade. Jung admite que cada indivíduo possua uma totalidade única que se expressará na medida em que viabilizar expressões de sua individualidade. Por outro lado, a psicologia analítica assume que o homem, no seu trabalho artesanal de auto construção, utiliza elementos exteriores e interiores, que também são compartilhados pela humanidade, ou seja, cada ser é parte de um sistema completo, onde todas as partes, por estarem interligadas, possuem uma totalidade anterior. O sujeito é entrecruzado por várias linguagens: a individual (sua história) e a coletiva que o coloca e o envolve em múltiplas interfaces interconectadas, a partir dos inúmeros pertencimentos do mesmo ao seu grupos e subgrupos. Por outro lado, o homem é animalidade e possui em comum com sua espécie determinadas características. E uma delas é, inegavelmente, sua possibilidade de romper com o ecossistema, de se distanciar de suas necessidades vitais, dissociando-se de sua totalidade. Cada sujeito (microcosmo) é ao mesmo tempo singularidade e parte da unidade. Somos constituídos por uma multiplicidade geral de combinação infinita, inesgotável, insubstituível como expressão subjetiva e objetiva de uma face do todo, não reduzível a unidade.

“Esta apreensão da totalidade constitui também a meta da Ciência (insiste) (...) em colocar questões bem definidas, que excluem, o quanto possível, tudo o que perturba (...) Com este fim, cria-se em laboratório uma situação artificialmente limitada à questão, que obriga a natureza a dar uma resposta inequívoca. (...) Mas se queremos conhecer em que consiste esta ação, precisamos de um método de investigação que imponha o mínimo de condições possíveis, ou, se possível, nenhuma condição, e assim deixa a natureza responder com sua plenitude” (Jung, 1986: 28).

Como comenta Morin (1980) sobre a curiosa situação das ciências humanas: em função do método limpamos o campo e banimos o sujeito das humanidades para que as ciências do homem pudessem ser científicas.

Para nos aproximarmos dos fenômenos é necessário a convivência de diferenças, de antagonismos. Para unir-mos, sem perder indentidades, precisamos admitir diferenciações, logo, unir sem “confundir”. Aceitar a ilusão da previsibilidade que surge a cada nova revolução epistemológica é ceder a uma cultura que insiste em capturar o novo e o múltiplo em esquemas definitivos.

A modernidade tem trabalhado mais com a separação (“logos”), que olha a totalidade e a desmembra, roubando-lhe a sua multiplicidade e o sentido de coesão e interconexão (“erros”). Aproximar saberes é desmontar essa edificação cultural e arquetípica de verdades unívocas. As especializações (ainda que necessárias) cumprem a finalidade de separar o conhecimento do homem sobre o mundo, logo a consciência da complexidade. Além disso, facilitam a prática acrítica. Só quando confrontarmos teorias e práxis é que podemos perceber as conseqüências éticas das tecnologias. Devemos estar sintonizados com a contemporaneidade para não vermos os destroços de nossa inconsciência individual e social. Quem pode se esquecer do desespero do física Oppenheirner que um dia acreditou que havia descoberto o segredo do átomo, mas só depois de Hiroshima e Nagasaki pode se aproximar da totalidade do mesmo. O conhecimento sem consciência é muito mais destrutivo do que a ausência de conhecimento (Cf. Byington, 1998). É responsabilidade da psicologia refletir sobre o sujeito do conhecimento e seu academicismo povoado de tecnologias destrutivas.

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