quarta-feira, agosto 30, 2006

A viajem do trem à nova flor.


Quando o vento passa e soa com sua leve brisa,
Ameniza, o incontido desmembrar do trem
Mas não há vagão que não destrilhe,
Com o estilhaçar do armazém

E sobre os vinhos derrubados com vagar
Estão as flores, do inverno à primavera
Em todo sonho a gente sempre espera
Que o além vai nos ajudar,
Mesmo que também tenha o diabo,
Pronto para nos matar.

Em dias em que fulge o sol
Sempre há um excesso de chuva para compensar
O trem sempre vai, sempre vai passar

Mesmo quando a esperança afoga,
A gente reza, a gente roga
A gente faz, a gente preza
Por uma proeza que mais que depressa
Vá mostrar-se por trás da mascara
E rapidamente rejuntar

Os pedaços descarrilhados do trem embrigado
E dar nó, onde este, desfez-se em pó
Que vai mostrar a cor,
Para o que estava incolor
Ou fez-se daltônico por um momento,
E com ardor
Vai lutar por um cimento (mesmo que seja constrangedor)

E, assim, em linhas tortas
Em nós tão novos
Nasce aquela flor, alimentada com calor
Neste novo resplendor
Gerado pelo sangue quente, de um novo amor
Que esta por vir.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Do 3 e 4 à Revolução


Gostaria apenas de começar um texto sobre a questão quadratura do circulo, ou, em outros termos, do 0 e do 4, para ampliar a discussão à questão do 3 e do 4, ou 3:4. A vontade de fazer essa exposição veio de um trecho de um texto dos situacionistas colocado no blog “Um grito de recusa e desejo”, de meu amigo A.Guerra (http://www.anarchia.blogspot.com/) onde eles citam a questão da quadratura do circulo.

Certamente o texto situacionista, ao fazer uma analogia à quadratura do circulo, se refere ao absurdo, mas, ao pensarmos em termos de tradições místicas, religiosas, a quadratura do círculo se torna algo bem diferente. Provavelmente os situs fizeram essa analogia pelo fato de ser uma tentativa de conscientização (quadrado) dentro de uma ordem pré-estabelecida (circulo). Mas, tentemos desvelar algo sobre essas representações geométricas ou numéricas, independente desse texto.

O circulo, segundo a tradição cabalística, sem o ponto no meio, se refere ao número 0, à origem de tudo, é o Ain Sof (Nada criador). Significa a inconsciência primeira, a potencialidade de tudo tornar-se. O circulo ainda nos leva à mandala, palavra derivada do sânscrito que significa, justamente, círculo. Esse termo tem derivação indiana e é relacionado a termos rituais. Do circulo inicial, o 0, começamos a entrar na criação, até chegarmos à dualidade, falemos, por exemplo, sobre a tradição judaica-cristã, no Gênesis (parte do Sefer Torá ou antigo testamento):

“(0a) – Jeová estava com as trevas iniciais. No Gênesis, as trevas (ou ‘escuridão’) estavam sob as águas, e era o deus do principio e da Terra sem forma e vazia. Essa etapa é ‘la terra était deser et vide: les tenebres (s´etendainent) sur l´Abisme et le souffle d´Elohim planait sur les eaux’: água da profundeza.

(0b) – A terra estava deserta e vazia: as trevas se estendiam sobre o abismo. Surge o sopro de Deus. (...) Elohim da instabilidade ao caos e produz, ou permite como nas cosmogonias em geral, a criação”. (Melo, 2002: 262-263).”

A partir desse caos inicial representado pela circularidade vazia, passamos a ter a representação geométrica do circulo com o ponto no meio (o 1) propiciando uma base, um ponto que, a partir daí, pode gerar a dualidade da vida, e sua materialidade, caracterizados pelo número 2[1]. No Gênesis ainda lemos: “No principio criou Deus os céus e a terra. E a terra era vã e vazia, e (havia) escuridão sobre a face do abismo, e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: ‘Seja luz!’ E foi luz. E viu Deus a luz que (era) boa; e separou Deus entre a luz e a escuridão. E chamou Deus à luz, dia, e à escuridão, chamou noite: e foi tarde, e foi manhã, dia um”.

“E disse Deus: ‘Haja expansão no meio das águas e que separe entre águas e águas!’ E fez Deus a expansão; separou entre as águas debaixo da expansão e entre as águas de cima da expansão: E foi assim (...)”.

Bem, podemos observar, não só nessa descrição inicial do Gênesis, como em várias outras tradições, o inicio indiferenciado do cosmos que foi modelado pela força criadora, assim como na tradição científica essa criação se refere também a uma força, o colapso do espaço e tempo. A criação da dualidade vem logo a seguir, como observamos, como condição da consciência diferenciada, aqui já numa interpretação psicológica, pois, se temos em mente que as cosmogonias são projeções da alma e modelos arquetípicos, isso só demonstra que a vida humana passa pelas mesmas fases que a criação do universo. O bebe inicialmente é o inconsciente puro, o indiferenciado[2], vindo a tornar-se gradualmente sujeito dividido, entre consciente e inconsciente, ou entre extroversão e introversão. Da mesma forma que Deus separa as águas, a luz da escuridão, nos criamos uma consciência diferenciada para lidar com os aspectos sociais da vida, da cultura, e para tal diferenciamos um “mal” de um “bem”, um “em cima” de um “de baixo”, mesmo que as coisas não sejam de fato assim. É dessa forma que criamos uma moral social, condição necessária para, na psicanálise, estabelecermos uma estrutura neurótica ao invés de psicótica (aqui não entremos na terceira estrutura clinica, a saber: a perversão).

Bem, voltemos à questão do circulo, e durante o texto podemos continuar abordando aspectos psicológicos. Voltemos em especial aos aspectos referentes aos números 3 (pirâmide) e o 4 (quadrado). O número 3 se refere aos aspectos masculinos, e teve uma grande importância no mundo ocidental, referente ao cristianismo e seu dogma ternário (pai, filho e espírito santo), estes 3 aspectos, contudo, acabam por ignorar a condição terrena da vida, como observaram os alquimistas ocidentais ao falarem sobre o Axioma de Maria, onde Maria seria o quatro elemento do quaternário. Outro sistema de crenças que possui bases “masculinas”[3] é o Judaísmo, onde o próprio nome de D´us em hebraico é הוהי (iod, hê, vav, hê – IHVH). Este é o famoso tetragrama que, na verdade, só possui três letras, pois o hê se repete. Apartir daí voltamos ao número 3.

O ternário, contudo, na vida ocidental não se refere somente ao cristianismo. Na filosofia Hegel propôs seu sistema dialético que, como sabemos, já provinha de épocas mais arcaicas, como a Grécia antiga (e certamente, se formos fazer um estudo minucioso, poderemos perceber o pensamento dialética em sociedades mais antigas).

A questão do 3 e do 4 é uma questão discutida por muitas tradições como o “I Ching” na China, Pitágoras na Grécia e os alquimistas. A relação entre 3 e 4 é como uma relação “do ser incompleto com o completo correspondente portanto a uma portio sesquitertia, isto é, 3:4. Essa relação é conhecida na tradição alquímica ocidental como Axioma de Maria. No simbolismo onírico também desempenha papel considerável (Jung, 2006: 355-356).

O três, logo, significa a incompletude e a dicotomia, pois, sempre onde existe um triangulo inferior existe um superior[4], como atesta a alquimia. É a divisão do “ser” ou do “objeto” entre uma metade negativa e uma positiva, negando uma dessas metades ao obscuro, ao recalcado ou ao projetado. Na nossa história ocidental a parte negada foi, durante a maior parte de nossa história, a metade feminina, a parte material, a parte mundana, maternal, apesar de existir também a possibilidade, como nos atesta a história, da negação do principio masculino[5]. Essa negação do feminino pode ter tido várias influencias determinantes dentro da história, da economia, da sociologia, da psicologia e da antropologia (quanta separação) sendo projetada, pelo cristianismo dominante, de modo nefasto em diversas tradições, culturas, modos de vida que reverenciavam um outro modelo de vivencia, de organização, como o paganismo, o hermetismo, o gnosticismo, etc.

Em seu modelo patriarcal o cristianismo não pode aceitar a diferença e conviver com ela, queria a pura hegemonia e castrava as individualidades que poderiam surgir. Cabia perguntar a cristianismo onde estava o feminino, o número 4, assim como Sócrates pergunta a Timeu: “Um, dois, três –mas querido Timeu, onde fica o quatro?” (ibid: 231).

Já confeccionamos alguma coisa da questão do três e do quatro e ainda para validar historicamente a repetição desse tema poder-se-ia explorar uma infinidade de símbolos em torno desses números, assim como, por exemplo, os “quatro filhos de Hórus ou pelo quatro serafins de Ezequiel, ou ainda pelo nascimento dos quatro eons a Metra (uterus) fecundada pelo pneuma na gnose-Barbelo, ou então pela cruz formada pelo raio (= serpente) em Bohme[6], até a tetrameria da opus alchymicum em seus componentes (elementos, qualidades, graus, etc[7]). A quaternidade sempre constitui uma unidade” (ibid: 314). Ainda podemos acrescer a própria divisão da psique em 4 funções (sensação, intuição, pensamento e sentimento). Longe de nós fazer uma enciclopédia de símbolos. Temos que pensar no que pode resultar esse conhecimento em aspectos práticos, psíquica e materialmente.

Trata-se de uma conjunção dos opostos, o grande Opus. Assim como nossa psique ruma para o Si-mesmo, i.e, ruma para a conjunção da consciência com o inconsciente, para a nossa totalidade, nossa sociedade também ruma para um estado sem classes, sem a dualidade atual, onde um se sobrepõe ao outro. Não se trata entretanto de ignorar as diferenças, ao contrário, trata-se de aumentá-las. Aumentar as diferenças, a pluralidade, o respeito mutuo, o acolhimento (feminino-materno) é um dos passos de uma sociedade integrada, mas essa integração e diferenciação não é a diferenciação narcísica[8] da sociedade “pós-moderna” que mantém a diferença enquanto modo de alienação de uma mudança estrutural, a sedução do consumo e da diversidade como modos de propaganda de um modelo liberal e cool que seria o oposto de todo autoritarismo. Não. O aumento das diferenças deve vir a todo momento em conjunto com uma ligação com o social, com o Ethos do qual falava Heráclito; deve vir de um modelo comum propiciando um equilíbrio entre diferença e igualdade.

Jung nos diz sobre a questão da integração psíquica: “O modo pelo qual se obtém a harmonização de dados conscientes e inconscientes não pode ser indicado sob a forma de uma receita. Trata-se de um processo de vida irracional, que se expressa em determinados símbolos (...). Da união emergem novas situações ou estados de consciência. Designei por isso a união de opostos pelo termo ‘função transcendente’. A meta de uma psicoterapia que não se contenta apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade em direção à totalidade” (ibid, 282). Podemos a partir daí problematizar se as questões sociais não passam por um mesmo aspecto, por um aspecto dinâmico, vivo, onde revoluções, rupturas se dão a partir de momentos raízes e irracionais. Uma outra possibilidade estaria em pensarmos as rupturas como processos organizativos e racionais criados a partir da volição de uma determinada população que procura interesses específicos.

Para essa analise temos que considerar primeiramente que existem momentos que parecem ser grandemente influenciados por processos reprimidos no todo social, por exemplo, quando a classe operaria foi reprimida, massacrada, marginalizada, ela permaneceu ativa e ganhando força, foi um recalque falho do sistema social capitalista, ele não foi capaz de eliminar aquela parcela da população que, na verdade, foi o motor do próprio capitalismo no século XIX, XX. Essa população só era subliminarmente percebida, como algo que permanece no fundo da figura (classe burguesa) e assim pode ir ganhando território para reivindicar o seu espaço ou sua revolução. O mesmo acontece na psique onde“A autonomia do inconsciente começa onde se originam as emoções. Estas reações instintivas, involuntárias que perturbam a ordem racional da consciência com suas irrupções elementares. Os afetos não são ‘feitos’ através da vontade, mas acontecem” (ibid, 272).

Essa questão organizativa e de influencia foi abordada nesse blog no texto “Sociedade, Grupos e Movimentos Sociais” apesar de ser uma analise muito limitada. Acredito que não podemos olhar essa questão por apenas um foco pelo perigo de perdermos de vista a totalidade. É evidente, e isso historicamente, que existem revoltas, insurreições, revoluções que tiveram uma influencia consideravelmente maior do aspecto conjuntural do que organizativo, mas contudo, não podemos ignorar a importância fundamental da organização em quase todas revoluções, um exemplo seria a própria revolução espanhola de 1936. Sem a organização de nada adianta um momento histórico e psicológico propicio. A partir daí só podemos pensar que mesmo se acreditarmos que para vivermos em uma sociedade sem classes, sem propriedade, precisamos de um tipo de pessoa especifica (uma pessoa individuada) e de um tipo de conjuntura específico (gerado pelos problemas e antagonismos gerados pela organização e economia capitalista) só poderemos chegar a esse lugar com a organização voluntária, participativa da própria população, senão sempre incorreríamos na limitação das revoltas (por mais que elas possam causar uma mudança nas pessoas durante sua permanência).

Para terminar citemos uma passagem escrita por Jung sobre um estudo de mandalas sobre um caso de individuação que fala por si só: “A ‘quadrata figura’ que aparece como símbolo da lapis[9] no centro da mandala alquímica, cujo ponto central é Mercúrio recebe o nome de ‘mediador’, o que promove a paz entre os inimigos”.

[1] Os números pares são caracterizações do feminino e da matéria, representam a dualidade talvez pelo fato da vida surgir da mulher, o que pode ter sido, segundo Joseph Campbell, um dos motivos da satanização da mulher por tradições as quais buscavam um distanciamento da vida e do sofrimento, fatos intrínsecos à vida, como nos aponta o budismo. Antes do nascimento ou da queda do paraíso (momento primordial) tem-se a crença de que a existência era perfeita.

[2] - Segundo a tradição psicanalista o bebe começa sua vida em simbiose com a “Mãe” (função materna), sendo aos poucos separado dessa Mãe que representa, para ele, o Outro (termo lacaniano). O momento máximo dessa separação se da no complexo edipano, com a castração e a inserção do que os lacanianos chamam de “Nome-do-Pai” ou, em outros termos, a internalização da lei. Outras tradições da psicanálise consideram de maneira diferenciada esse momento, como os reichianos que, apesar de creditarem importância ao complexo edipano, crêem que existe uma necessidade de sublimação do amor edipano em uma criança de idade aproximada e não concordam, portanto, com a necessidade essencial do freudismo para a evitar a psicose, que é o recalque desse desejo, a separação do Id e a criação da lei social e do modelo ideal, o Super Eu.

[3] - Evidentemente aqui, como em todo o texto, não me refiro a um masculino biológico, mas sim a um fato psicológico; um conjunto de características que ahistoricamente determinam um modelo que se modifica historicamente. Longe de mim, portanto, propor características masculinas a homens e femininas a mulheres. Pelo contrário, creio que ambos possuem ambas as características, assim como colocam Jung e James Hillman.

[4] - Aqui podemos procurar a simbologia do número 6, que, como nos diz a tradição cabalista é caracterizado geometricamente por dois triângulos, um superior e outro inferior, representando o lado sagrado e profano do ser humano, a potencialidade de ser o sumo bem e o sumo mal.

[5] - Esse princípio masculino é chamado na psicologia junguiana de animus. O animus, ao que me parece, também foi “renegado” durante algumas fases da história, como no período matriarcal anterior. Dificilmente podemos, no entanto, observar sociedades que ignoram completamente características de um desses modelos (masculino e feminino, animus e anima), o que aconteceu e acontece freqüentemente é termos uma ênfase mais ou menos acentuada de um desses modelos.

[6] - No budismo os ‘grandes reis’, os locapala (os guardiões do mundo) constituem a quaternidade. V. Samyutta-Nikaya, I, p. 367.

[7] - “... mystica quasi distillatione, Deus aquam hanc primordialem in quatour partes ac regiones separavit et distinxit” (Como numa destilação, Deus separou e dividiu essa água primordial em quatro parte e domínios) (Sendivogius, Epístola XIII in: Bibli. Chem, curiosa II, p.496). Em Christianos (Berthelot, Alch. Grecs, VI, IX, 1, p. 393, e X, 1, p.394) o ‘ovo’, bem como a própria matéria, é constituído por quatro componentes. (O mesmo como citação de Xenócrates, op. cit., VI, XV, 8, p. 414.)

[8] - Para mais informações ler nesse blog o texto: “Seine majestat das Ich” (Sua majestade, o Eu).

[9] - Lapis nessa frase se refere a pedra, mais especificamente, à pedra filosofal. (nota minha).

Livros usados:

Jung, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, ed.vozes: 2006.
Melo, Origem e totalidade, 2002.
material do centro de estudo de cabala.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Novo Amor; o amor do novo.


É, amor, a vida é dura. Eu sei. Por quantos cantos mais caminharei? Em quantas galaxias mais viajarei? Só nos resta prosseguir a estrada, só nos resta subir a montanha do vale da morte. Por sobre abismos atravessar. A vida é dor, eu sei, Amor. Velhos sabios já diziam: é necessário o caos para dar luz a uma estrela cintilante; é necessário atravessar o abismso, mesmo sendo periogoso bambear e cair. Campos de neve, vejo bem. Meus sonhos me contam coisas inacreditaveis meu bem, e os seus também. É um mar de ondas que nos segue. Eu peço um barco, será que ele vem? Segure firma na escada da vida. Suba, sempre. Suba sempre. Segure firme. Te protegerei. Entre o choro e o risco há sempre algo sagrado. A vida sempre brilha, ela iradia Deus em cada canto, em cada raiar de dia. E novas manhãs trazem sempre novos frutos, e novos dias, mesmo que dolorosos, são sempre maravilhosos.

terça-feira, agosto 15, 2006

O Ar-condicionado.



O chão cinzento, algumas latinhas de refrigerante jogadas no chão. Ele olhava de maneira indireta e desfocada aqueles objetos. Chutava um, chutava outro. Andava pisando nos pisos quadriculados daquele asfalto comum das ruas do centro do Rio de Janeiro. Carioca, o nome do bairro. Carioca, era o que ele era. Sacou um cigarro do bolso, acendeu-o com seu isqueiro de um real. A fumaça cruzou seus óculos e vagou para o céu.

Caraca! Tenho que ver o Luis hoje. O cara ficou de me passar umas xerox´s que tenho que tirar pro trabalho.

- Renata! Cara! Como foi aquela festa? Me conta amiga! Falava gesticulando Rosa, com os braços afoitos e um sorriso sociável.

- Cara! Tu perdeu! Porra! Fiquei com o Tuninho, depois fomos pra um motel fodasso e, porra, foi foda..

João tira seus óculos escuros; abaixa o cigarro, como um sinal de continência, e olha para aquelas duas mulheres passando, como numa passarela. Olha para trás. O rebolado, o swing, as nádegas. Meu Deus! Pensa com o tesão. Da um suspiro e volta para seus pensamentos habituais: Xerox, trabalho, a porra do patrão. Olha para o relógio. “Ainda da tempo, ainda da tempo” reflete, chamando o tempo como seu advogado de defesa.

O relógio reflete o sol escaldante. Entre trinta e cinco e trinta e sete graus, acreditava ser essa a temperatura, e certamente não estava errado, o sol queimava a pele, mas, para aquele cidadão carioca, trabalhador e andarilho, aquilo era mais do que habitual. A espera do ônibus, que não tardaria a chegar, João fazia as contas de cabeça para ver a que preço ficariam as xerox´s.

Entra no ônibus. O motorista sai enquanto ele ainda está no primeiro degrau. Ele não se assusta, afinal, isso já é de praxe. Passa sem dizer bom dia para o motorista. Pega o dinheiro de sua carteira comprada no camelodromo da Uruguaiana; demora um pouco a achar as moedas certas para completar a passagem. Nisso, uma pequena fila se cria, mas nada muito anormal. O ônibus, ao ir de encontro a zona norte, se depara com uma blitz, ali por volta de Rio Comprido. Vários policiais com fuzis maiores que eles mesmos prenunciam uma guerra.

- E ai! Me conta tudo! Quero saber os detalhes! Como foi? Ele é bom de cama?

- Caralho! Tinha que ver. Mo pauzão. Achei que nem ia caber. Foi lindo.

As duas riam e riam, iam comprar uma comida no Giraffas, comeriam uma das opções dos pratos econômicos. Passam por diversos mendigos, garotos de rua e até mesmo uma pequena discussão entre camelôs, mas nem sequer reparam em nada disso. A conversa delas transbordara dentro daquele mundo particular. No final, o giraffas acaba por ficar caro, pois elas queriam economizar para comprar algumas roupas, e resolvem comer pasteis no chinês.

Um puta engarrafamento atrapalha a viajem, mas João nem se percebe do fato. Estava viajando demais para perceber essas pequenas sutilezas. Pensava em Sartre: “O homem está condenado a sua liberdade”, “O homem é essencialmente livre”: questionava-se abruptamente e entrava em conflitos aparentemente indissolúveis. Livre arbítrio e determinismo, eis do que se tratava sua reflexão. Olhou para o relógio. Da um suspiro. Merda, pensa, não vou conseguir chegar na hora e o patrão vai me dar um puta esporro.

Já tiradas as xerox´s, algumas horas depois, ele chega ao trabalho. De volta à pequena saletinha num escritório no centro da cidade. Entra na sala, com ar condicionado, do seu patrão. Olha aquele sujeito de 1,82 de altura, uns 85, 90kg, cabelos levemente grisalhos e com uma cara de que acabou de sair do inferno e lhe diz: “Chefe, já consegui trazer tudo”. Este lhe responde, com uma evidente falsa indiferença, como se responde a plebe: “Porra. Por que tanta demora? Ta ok.. ta ok... vai lá.. Ó só. O Renato não vai poder cobrir até as 21 horas, então tu fica ai, beleza?”. João olha pra baixo. Faz um olhar reflexivo, mas não pensa. Responde: “Ta bom” e sai. Demora ainda o bastante para ver seu patrão comendo um ovo, ainda cru, com casca e tudo.

Preso no serviço, como o gado às cercas, João vê da janela seu patrão sair em seu novo Vectra, com ar-condicionado, modelo novo. Começa então a pensar sobre luta de classes. Pensa sobre sua realidade. Começa a rir, apesar de não haver nada engraçado. Vê, pela janela, bonitas mulheres passando e olha seus peitos e bundas. Pensa em como seria bom estar fazendo sexo no ar condicionado essa hora, ah, ah, ah. Começa a cantar “Life is a lie” e esquece do tempo.

Ela vai para casa, após o dia de trabalho como secretária, e pensa no que gostaria de comprar no shopping. Lembra-se de que precisa pensar primeiro no que vai comer, pois já estava tarde e seu almoço tornara-se resumido a dois pasteis de queijo e um caldo de cana. Resolve ir comer espetinhos e, ademais, isso seria ótimo, pois ela estava sozinha em casa e não suportava a solidão, nem tão-pouco pensar demais consigo mesma. Na venda de espetinhos, Renata, ao menos, teria a possibilidade de conversar com algumas pessoas e, quem sabe, até tomar uma cervejinha. O seu grande dilema era que já havia perdido quase 60% da novela que passava na Globo e naquela altura ver os 40% da novela não poderia absorvê-la naquele mundo paralelo.

Uma longa chuva começa a jorrar na cidade, com grandes raios. João, o revolucionário, chega em casa bem tarde. Não pensa muito em comida, depois de tudo terá muito tempo para comer. Senta no seu pequeno cubículo. Seu quartinho bagunçado por planos e papeis, papeis e mais papeis. Tudo girava em torno do seu motivo, de sua razão de viver, o assassinato de Lula, não o crustáceo, mas o presidente. As paredes do quarto pixadas, algumas garrafas de bebida vazia completavam a decoração. Havia na sala a mesinha, de um bambu antigo, e um som com entrada para fita e cd.

Tudo já estava certo. Sexta feira, dia 23, seria o momento. Lula nesse dia faria um comício para os trabalhadores de um sindicato que ficava próximo ao seu trabalho. João pensava minuciosamente as posições, tempo, posicionamento dos guardas, o ângulo em que poderia atirar, a iluminação. Calculava como um matemático. Na verdade João era muito inteligente, contudo, sempre fora um estranho no ninho. No seu colégio os garotos não se davam muito bem com ele, pois João era muito calado – e ainda somava-se que, além de estranho, possuía um cabelo estilo porco-espinho, o que não lhe rendia popularidade. Desde moleque sempre foi um pouco excêntrico, um pouco fora da lei, das normas. De um tempo para cá, todavia, ele estava ainda mais distante das pessoas, ainda mais voltado para si, só que na forma de planos vingativos, tempestuosos. Diria-se que sua timidez bonita, com aquele toque especial de ingenuidade, havia se transfigurado em perversão. Mas era apenas a opinião popular.

“Sim... sim... tudo bem... claro que eu vou boba!” Dizia ao telefone. Sua alegria manifesta era clara. Estava muito feliz por ter sido convidada para uma festa dos sindicatos, quando o próprio Lula, quem diria, estaria presente! Renata evidentemente não era PTista ou qualquer coisa do gênero, na verdade, ela nem se importava com política. Não que ela dissesse “política é coisa de gente doida” ou “política não importa para o povo”, ela simplesmente não dizia nada. O que lhe chamava atenção era a possibilidade de estar perto de alguém famoso.
Trinnnnn... Trinnnnn..

- “Alo”. Fala João, com uma voz um pouco rouca pelo sono e pelo stress.

- “Alo”. Diz a voz firme do outro lado.

- “Oi patrão” diz João, com um toque de raiva e com um Q de submissão.

- “João. Escute. Aquela sua sexta feira de descanso... você pode remarcá-la?” É obvio que a pergunta já pressupunha a resposta:

- “É claro patrão”.

- “Ok então. Depois a gente conversa”.

- “Ta bom”

- “Tchau”.

João então começara a refletir, pós-ódio, que a sexta feira referente era a do dia 23, dia em que marcara para assassinar o presidente. Por mais surpreendente que isso parecesse, para o João revolucionário, João trabalhador nunca havia desobedecido a uma regra do seu patrão e isso parecia conspirar contra seus planos. A primeira guerra seria, portanto, interna.

O dia anda. O tempo voa. Dia 22, 2:30 da manhã, João ainda estava acordado com um enorme conflito psicológico. Transgredir as regras bem estabelecidas da sociedade formal, a qual, já havia se acostumado, submetido, ou transgredir as regras de uma parcela de sua personalidade, deixando seus planos hiper-organizados de longa data a ver navios? No final, ele acaba por dormir em meio ao mar agitado... Durante a noite sonha que estivera num lugar muito escuro, numa noite um tanto sombria, até que raios começam a cair e um deles o acerta, transformando-o em pó, um pó dourado. Ele acorda suando, e de repente, fez-se o dia. Já são 7:30 da manhã. Na verdade, ele tem que sair correndo se quiser ir ao trabalho.

Ele começa a andar de lado a lado da sala. Fica afoito. O mundo roda a mil. Berra! Berra!!! Arranca os cabelos! Essas foram apenas algumas das sensações e atitudes de João. De fato, o que ele sentiu é indescritível. Uma duvida moral que ele não estava pronto para lidar. Começara a pensar que o assassinato de Lula, por mais desgraças que este cometera, de nada adiantaria e que, não obstante, não seria humano. Humano? Pergunta-se. Humano! Vem a resposta, de alguma parte de seu corpo a qual ele não consegue identificar. Não que se tratasse de um caso de esquizofrenia ou algo congênere, mas uma dissociação do Eu, que já a tempos se ensaiava tornara-se manifesta.

Renata, ansiosa pela festa que Lula estaria presente, resolve ligar a tv, pois já estava muito perto da hora da festa e essas horas ela ficava demasiadamente ansiosa. Na tv, eis que está passando um programa muito estranho, canhestro e démodé, no entanto ela resolve vê-lo. Trata-se de uma luta de titãs, algo como um desenho infantil. Ela não sabe identificar o nome, ou coisas assim, sem nexo. Um dos titãs tem a aparência semi-humana, como um poderoso monstro com dois braços, boca, nariz, duas pernas, etc., e o outro é algo como um grande robô, bem protegido sobre seus metais, imperfurável, dir-se-ia, até ele ser perfurado pelas garras da fera. A luta titânica que se passava acabara por derrubar aqueles dois gigantes e no chão, nisso um espírito apareceu, enquanto os dois se preparavam para re-começar a luta. Ela desliga a TV, já está cansada de baboseira...

Ele treme! Treme! Parece que terá uma convulsão e começa a chorar...

- Oi amiga. Eu estou saindo de casa já! Diz Renata, abrindo a porta enquanto fala em seu celular.

- Vou sair... Eu vou matar aquele filho da puta! Diz João para si mesmo e bate a porta com toda força.

Já na rua João vê o sol cintilante, como brilhando para ofuscar o seu dia de gloria. Aquela luz quererá dizê-lo alguma coisa? Ele passa acelerado, faz sinal, mas o ônibus não para. Era evidente! O destino conspirava contra ele. Ele começa a blasfemar contra Deus. Maldito! Por que essa provação? Tu nem sequer existes! Tu és um vilão! Tu és um tirano! A mudança de tratamento muda, mas ele nem sequer se da conta, agora utilizava somente a segunda pessoa do singular.

Entra no ônibus. Engole a saliva. Passa pela roleta. Começa a rezar. Paulatinamente João vai se acalmando, mas ao invés de seus pensamentos retornarem ao normal eles cessam. Ele já não pensa em nada. Neste instante ele desce do ônibus, havia chegado no local da festa, os seguranças lhe pedem o convite, ele os mostra. Entra.

- O convite senhorita.

- Aqui está.

- Obrigado. Pode entrar.

Então ela entra, com seu vestido vermelho e seu salto alto, com suas nádegas malhadas e sua cocha torneada, sorrindo, como se algo excepcional estivesse ocorrendo. Ela muda o ar solene que poderia devir em ocasiões como essa. Alguns homens olham admirados para aquela bela forma que, por mais que se pareça superficial, ainda possui um brilho oculto que atravessa o ar.

Renata se senta numa cadeira e toma um gole de vinho, servido com quitutes por um garçom. Logo após, vê João. Acha-o atraente e fixa o olhar nele. Ela se sente estranha na verdade, pois, sentia algo muito forte o qual não conseguia identificar e, o que era para ser só tesão, transforma-se num sentimento singular ou, ao menos, invulgar.

João não vê nada. Seus olhos grudados nos dois lados daquela festa anunciam seu nervosismo, ele soa como um maratonista. Sente um medo profundo, está frio, gelado. Pensa compulsivamente: “Vou matá-lo, vou matá-lo”. Suas mãos tremem, ele come dois salgados. Sua visão se desfoca. Ele solta uma leve risada. Uma velho senhor senta ao seu lado. Ele teme que o senhor seja da policia.

- Olá. Diz o velho senhor barbudo.

- Oi. Diz a voz rouca, grogue, dissimulada de João.

- Da onde você vem? Pergunta o senhor, com um leve sorriso ameno no rosto.

- Como assim? Que diabos afinal o senhor quer saber?

- Bem, me desculpe, eu nem ao menos me apresentei. Chamo-me Thiago. Venho do norte, estou na casa de minha irmã, vim passar uns tempos aqui e vim no lugar dela, para tomar um vinho e comer uns bolinhos, he he he. Você entende, não?

- Ora senhor! Não vê que me importuna? Diz João, já totalmente fora de si. O velho, com efeito, deixará-o mais confuso do que já estava.

- Bem, não me leve a mal. Mas o jovem me parece perdido, não sabe de onde vem e nem para onde vai. Para que está aqui? Bem. Calo-me, pois vejo que não sou bem visto, he he he. Irei tomar um vinho, pois ganho mais assim. Boa sorte meu jovem. Fique com a fé.

Algo na conversa parece ter mexido com João. Ele estava tonto. Começa a se perguntar o que está fazendo naquele local estranho, grotesco. Assusta-se bruscamente na possibilidade de matar o Lula! Assusta-o somente o fato de ter pensado nisso! Será que o velho estaria dizendo algo importante? Começa a ponderar cada questão, minuciosamente. Ele olha para os dois lados, procura saber se não está sendo vigiado. Vê Renata o olhando, não compreende. Assusta-se. Ela vem na direção dele. “Que diabos, que diabos!” Pensa João, “Será que ela já sabe tudo?? Será que a policia me descobriu?”.

Ela veio andando, lentamente, e a cada passo que dava, uma fumaça branca saia do chão. Seus olhos brilhavam como a de uma felina. O batimento cardíaco de João aumentara violentamente, o tempo torna-se lerdo, muito lerdo! Ela não pensava em nada. João tremia. Renata então começava a sorrir. Ele temia sorrisos. Abriu a boca, aproximadamente uns 3 centímetros, deixando-o boquiaberto; a sua espinha estava congelada, ele, apesar de tudo, não desviava o olhar, para ele se tratava de uma guerra, para ela, de um sonho.

Ela chega perto dele. Ela o beija. Ele chora.

O sol se põe com toda força. Lula sai andando entre a população sindical que, por mais que o odeie, e todo seu partido, no momento sorri para a celebridade que ali se encontra. Fotógrafos tiram fotos, seguranças o protegem. Lula caminha para um palanque, onde começa um discurso emotivo sobre algo que, evidentemente, pouco lhe importa.

Renata segura João com um abraço, abraça-o forte, João chora muito. O tempo se fecha e começa a chover, a chuva torna-se, com o tempo, tão forte, que o discurso de Lula se torna impossível naquele local aberto. Ele vai embora, com toda sua imprensa.

- Eu ia fazê-lo, eu ia fazê-lo, diz arrependido, não por gostar de Lula, continuava a não gostá-lo, via-o, com muito realismo, como um ladrão, um usurpador, um mentiroso, vendido, entre outros adjetivos veneráveis.

- Não importa mais, não importa mais, agora estou contigo.

- E o que faremos agora?

- O que você acha que faremos?

- Eu não posso voltar para o trabalho, eu não posso voltar para aquela vida, só me resta desbravar novos caminhos, mesmo que várias barreiras me impeçam.

- Vou contigo onde você for!

Correram então e roubaram, sorrateiramente, o carro de Lula, após deixarem desmaiadas suas sentinelas, as que protegiam a carruagem. Pisaram levemente no pedal, de modo a não deixar vestígios e, quando a primeira sentinela ameaçou olhar, plan, eles já não estavam lá. Como ninjas haviam feito já um pequeno trabalho social.

João sabia que, desde aquele momento, não poderia mais travar um passo para trás, não poderia mais se subordinar e viver a vida de outros, não poderia mais servir como um escravo. Tomou as rédeas do cavalo. Voou. Eles, João e Renata, trataram de desenvolver diversas potencialidades que lhe eram inerentes e estavam latentes para sobreviverem, ou melhor, viverem e, com tal força, que seria pouco compreensível ao mais ávido economicista que crê que se é moldado pela economia e processos de produção atuais. Não. Eles não eram a antítese necessária do próprio sistema. Eles não eram a escoria social. Eles não eram adaptados aquele estado de coisas. Eles eram singulares. Únicos. Como que por um segundo portais de outro mundo tivessem sido abertos, e, nesses portais, eles não temeram entrar.

Tornar-se único, em alternativos campos, exige independência, insubordinação, força, auto-estima e parece que foi isso que eles desenvolveram.Viram o dragão surgir com toda força, viram-no com suas cascas duras, viram-no obstruindo seus destinos. Isso já era o bastante para matarem-no, com uma lança encravada no peito. E, depois de um bom tempo, tornaram-se lendas. Surgiam e desapareciam rapidamente, de estranhos ninhos, de estranhas colméias, trazendo o mel, doce.

Hoje só se pode citar, como diz um velho andarilho, uma frase do antigo João, que foi um grande herói de seu tempo. Ele costumava dizer, lembra o velho: “Não precisamos de ar-condicionado!”.

terça-feira, agosto 08, 2006

Zen

Palavras de Sukuzi, filosofo Zen, ao começar uma palestra na Europa:

God against man
Man against God
Man against nature
Nature against men
Nature against God
God against nature
Very funny religion

segunda-feira, agosto 07, 2006

Tao te king

A forma da grande vida segue totalmente o Tao.
O Tao age nas coisas invisíveis e inapreensivelmente.
Inapreensivelmente, invisivelmente nele estão as imagens!
Inapreensivelmente, invisivelmente nele estão todas as coisas!
Insondavelmente, obscura, nele está a semente!
Esta semente é a verdade. Nela está a crença.
Desde a origem até hoje não se pode prescindir de seu nome
para compreender o nascimento de todas as coisas.
E como posso saber que o nascimento de todas as coisas assim se deu?
Através dele.

Lao-Tsé.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Introdução a Epistemologia Junguiana.





Como eu estou escrevendo um texto um pouco mais abrangente sobre o assunto, que de certo não ficará pronto este ano, tinha pensado em meus botões em fazer um pequeno resumo aqui para os interessados. Mas, me perguntei: quem se interessa por epistemologia? Em especial, em epistemologia e Jung. Sobre essas duvidas achei que o texto passaria pelo blog apenas como mais um dos textos que só servem para eu dar, quando muito, uma pequena revisada em alguns conhecimentos e fazer uma pequena ginástica nos meus dedos. Mas, como eu perguntei no ultimo post sobre a validade de um tal texto e um grande número incontido de fãs soltou fogos diante desta possibilidade, só me resta obedecer-lhes cegamente.

Modelo Científico Clássico e Jung

Ignoremos, a priori, o período grego e escolástico para não complicar muito as coisas, até porque já fiz um pequeno texto: “Epistemologia e os gregos” que, apesar de bem superficial há de fornecer o mínimo de informação sobre o assunto. Sabendo-se que epistemologia se refere à ciência da ciência – uma ciência dos conhecimentos validos -, ou, de maneira mais contemporânea, uma ciência dos conhecimentos provisórios, podemos prosseguir.
A ciência clássica, que teve seu grande expoente em Newton, foi especialmente influenciada por Descartes, além de teóricos positivistas e empiristas como: Locke, Berkley e Hume. O modelo cientifico clássico foi o modelo que era hegemônico enquanto Jung fazia sua formação, e começou sua ascensão quando “pela primeira vez Tomas de Aquino leu Aristóteles, diretamente do grego”. (Cardoso, 2002). Descartes foi especialmente influente no que se refere ao modelo de causalidade cientifico, ou seja, na procura das causas dos efeitos materiais.
Pode-se dizer que todo esse modelo foi baseado num culto a razão, onde “A razão conceituada segundo a cultura ocidental origina-se a partir da palavra latina ratio, derivação do verbo reor, que significa contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular. Assim, a própria origem etimológica da razão denota um sentido de ordenar, pôr em um modo ordenado” (Bicalho, 1998: 31). Certamente para Descartes a razão deveria ter um valor explicito, pois para ele a validade do real derivava da alma, onde ele conceituava uma dicotomia entre res extensa e res cogito, ou, realidade da matéria e realidade do pensamento, não é por menos que a sua máxima foi o famoso: “Cogito, ergo sum”, “Penso, logo existo”.
Descartes havia então proposto leis fundamentais, que seriam: “principio da identidade, da não contradição, do terceiro excluído e da razão suficiente” (ibid: 33) ainda segundo Bicalho “O principio da identidade anuncia que ‘A é A’, ou ‘o que é, é’: afirmando que uma coisa só pode ser conhecida e pensada se for percebida por uma identidade. O principio da não contradição, cujo enunciado é ‘A é A e é impossível que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, não A’ (...) O principio do terceiro excluído enuncia que ‘Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade’, definindo como princípio a decisão de um dilema no formado ‘ou isto ou aquilo’, exigindo apenas uma das duas alternativas como verdadeiras. E, por fim, há o principio da razão suficiente, que afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir e para acontecer, e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecida pela nossa razão”. (ibid: 33, 34).
Emitida a razão, como essencial no ato de conhecer, uma grande mudança ainda seria alçada para o desenvolvimento da ciência clássica, em especial com Locke. Enquanto o modelo de Descartes ajudava a fundamentar uma ciência matemática, por exemplo, onde poder-se-ia alienar qualquer inteligência do mundo externo, foi com Locke que os fundamentos filosóficos da famosa extroversão ocidental se deram, a partir daí todo conhecimento tornara-se modelado pelo mundo, eis que temos a perola de Locke: “Nihil est in intelectu quod non antea fuerit in sensu” (Nada esta no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos).
Vejamos onde Jung fica nesse balaio de gato, pois senão entraremos nas nuances desses pensamentos e nos perderemos no texto. Demos os contornos introdutórios ao pensar positivista, o qual moldou a ciência dita clássica, todavia, ainda seria mais interessante darmos uma pequena definição de positivismo e do posterior pensamento antipositivista. “O anti-positivista – é relativista, entendendo o mundo a partir dos indivíduos que o integram, só se podendo captar o significado de uma situação do ponto de vista do quadro de referência de seus participantes. Não existe qualquer conhecimento objetivo, podendo-se no máximo se chegar a um acordo inter-subjetivo” (Cardoso, 2002) enquanto “o positivista – procura explicar e predizer o que acontece no mundo, buscando regularidades e relacionamentos causais, através de pesquisas experimentais e da possibilidade de falsificação de hipóteses. Para ele, o conhecimento é acumulativo”. (ibid).
Sem duvidas Jung começou suas pesquisas influenciado por um modelo causalista e nomotético, tanto que fazia testes experimentais de associação de palavras a fim de comprovar as teses freudianas de inconsciência. Jung então diz em sua biografia: “Com as experiências de associações (1903), começou minha atividade científica propriamente dita. Considero-as como meu primeiro trabalho realizado na linha das ciências naturais. Foi então que comecei a exprimir meus pensamentos próprios. Depois dos Estudos Diagnósticos sobre as Associações (1903) apareceram duas publicações psiquiátricas: Psicologia da Demência Precoce (1907) e O conteúdo das Psicoses (1908). Em 1912 apareceu meu livro Metamorfose e Símbolos da Libido, que pôs fim à amizade que me ligava a Freud. Nesse momento – nolens volens – comecei a seguir o meu próprio caminho”. (Jung, 2005: 182).
Jung, deste modo, começou a analisar o conhecimento a partir de pesquisas experimentais e causais, sustentando especialmente sua tese de complexos inconscientes. Contudo, não demorou muito para Jung partir a outro caminho, um caminho próprio. Enquanto Freud, que foi uma influencia fundamental, permanecia nesse modelo cartesiano, a fim de encontrar as causas dos traumas – chegando, a partir daí, no complexo de Édipo -, Jung já observava outros aspectos da experiência, convencido de que, em certas situações a tentativa de encontrar causas nas ciências humanas só pode levar a metafísica ou à subordinação dos fatos a construção teórica.

Fenomenologia, Tipos Psicológicos e Autonomia da Alma.

“É uma tirania intolerável supor que existe apenas uma psicologia ou apenas um principio psicológico fundamental; isto é um preconceito pseudocientífico do homem comum. Fala-se sempre do homem e de sua ‘psicologia’. Também se fala da realidade como se existisse apenas esta única. Realidade é o que atua na alma humana, e não o que alguns acham que lá atue, fazendo generalizações pré-concebidas” Carl Gustav Jung (Tipos Psicológicos, 1920-21)


Podemos dizer que além da influencia freudiana na formação de Jung ele contava com outras influencias significativas como a de Pierre Janet, contudo, diferente de Freud e Janet, que tiravam suas conclusões através do estudo da neurose, Jung trabalhou um grande período na “área da psicose”, e, como Janet, adotava um método muito mais descritivo do que causal. Janet não procurava as causas, mas descrevia seus fenômenos criando assim a possibilidade de estabelecimento de modelos, quadros de patologia e divisões analíticas. Da mesma forma Jung seguiu por um caminho onde pudesse observar o fenômeno como se apresenta e não como pressupõe algum postulado abstrato ou personalista.
Ele então se valeu do empirismo, i.e, se ateve aos fatos e procurou utilizar o método fenomenológico para estudar a alma. Ele nos diz no ensaio “Mente e Terra” “Minha concepção da alma nada tem a ver com isto, porque é puramente fenomenológica... estou simplesmente tentando apreender cientificamente os fenômenos psíquicos elementares que subjazem em nossa crença nas almas” (Jung apud Cardoso, civilization in transition, 1978: 43) Para tal, cada caso passa a ser um caso e, antes de especularmos através de uma teoria devemos esperar que o fenômeno nos comunique quem ele é, o que ele é (redução eidética). Na interpretação dos sonhos, por exemplo, enquanto Freud se ateve as suas interpretações sexuais, como falar que uma chave entrando numa fechadura significa um ato sexual, Jung tentava não fugir do sonho, da observação do fenômeno que se mostra, tentando fazer uma hermenêutica, ou seja, um estabelecimento de contexto e da intencionalidade daquela imagem que se desvela. Então a própria interpretação do sonho só pode começar de maneira horizontal através da própria pessoa, ou seja, através de associações com sua própria vida para depois tornar-se mais complexa, social e histórica.
Contudo, não bastando a observação de um único fenômeno, pois ao mesmo tempo que há algo que nos torna singulares, assim como cada arvore é uma arvore, cada ser é um ser, há também um modelo básico que perpassa tanto a natureza como nossa psique. Desta forma, é um fato genérico e bem conhecido que todos os seres humanos tem um coração, ou um cérebro, apesar de cada coração e cada cérebro serem estruturas singulares, únicas. Jung observou que todos, de fato, não somos tabulas rasas no que se refere a psyché, mas possuímos estruturas básicas que se manifestam através de símbolos, de acordo com o contexto da época ou de nossa singularidade. Nessa perspectiva a própria ciência seria um modelo de interpretação e observação dos fenômenos, não podendo, no entanto, reivindicar para si o critério de validade única ou absoluta.
Através do estudo dos tipos psicológicos, Jung pode observar como diferentes indivíduos, com seus diferentes tipos psicológicos, tinham diferentes modos de relação com o mundo. Esse estudo abriu margem à multiplicidade de analises da psique humana, já que esta se viu em demasia complexa para que apenas uma escola pudesse compreendê-la em sua totalidade. Segundo Melo: “Epistemologicamente, C.G. Jung foi contrario a idéia de fundar uma escola hegemônica em psicologia (1981a; cf. Franz, 1980). Defendia a complexidade do psiquismo e a multiplicidade de facetas deste, descreveu a necessidade de convivência co-disciplinar psicológica entre Adler e Freud, tentando incluir em um só modelo as motivações humanas descritas pelos autores.” (Melo, 2002).
O problema dos tipos psicológicos foi um problema, em grande parte, epistemológico. Nenhum dos tipos, na verdade, pode reivindicar para si todo critério de verdade, pois incorreria, desta forma, a uma interpretação unilateral dos fenômenos, rechaçando apenas uma das possibilidades de se relacionar com o mundo, ou com a alma. Jung diz que “A idéia da uniformidade das psiques conscientes é uma quimera acadêmica que facilita a tarefa do professor diante de seus alunos, mas que desmoronou diante da realidade” (Jung, 1991)
Essa observação pode vir-a-ser a partir do momento em que a psique deixa de ser compreendida como um mero epifenomeno do mundo externo, do mundo “material” e passa a ter uma autonomia relativa e tanta validade quanto o mundo objetivo, senão mais. Na verdade “O imaginário humano possui uma historia, uma estrutura anterior que foi assim estruturada por todas as experiências vividas pelo homem”.(Melo, 2002). Jung então estudou os mitos e pode observar de que modo independente de época, local, contexto todas as civilizações apresentavam estruturas idênticas, ou seja, a base dos mitos é a mesma diferindo a partir daí na suas manifestações históricas e contextualizadas. Por exemplo, toda civilização possui heróis, possui um mito cosmogonico, etc., entre outros símbolos freqüentes podemos destacar o “puer aeternus” (eterno jovem), a sombra, animus e anima. Este estudo antropológico, contudo, não foi feito ao acaso, e sim a partir do momento que Jung percebeu que esses mitos se repetem na história e mito individuais de cada ser humano, aparecendo em símbolos dinâmicos e teleológicos, por exemplo, nos sonhos.
Os mitos são, portanto, não simplesmente uma explicação para o sentido do mundo, mas apresentam a própria alma humana manifestada através de símbolos (do chinês sym + bailen que significa a união de duas metades opostas de uma moeda). Desse modo o estudo da mitologia é também um estudo da própria natureza humana, da própria psicologia. Jung então dirá: "A psicologia analítica faz parte essencial das ciências da natureza; entretanto, está submetida mais do que qualquer outra aos preconceitos e condicionamentos pessoas do observador. É por isso que, a fim de evitar erros mais grosseiros, ela depende, no mais alto grau, da documentação e comparação históricas". (Jung, 2005: 177).
Quando falamos dos protótipos do herói, do mito cosmogonico e de outros falávamos do que Jung chamou de arquétipos e é ai que gostaríamos de mostrar que o arquétipo “é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação. O que é herdado não são as idéias, mas as formas, as quais sob esse particular correspondem aos instintos igualmente determinados em sua forma. Provar a essência dos arquétipos em si é uma possibilidade tão remota quanto a de provar a dos instintos, enquanto os mesmos não são postos em ação in concreto.” (Jung, 2006: 91). Eles foram observados então de vasto material empírico e não tirados simplesmente de conclusão a partir de uma lógica personalista ou aritmética. Jung então explora os métodos a partir dos quais conhecemos os arquétipos e seu sentido: “Não há substitutivo ‘racional’ para o arquétipo, como também não há para o cerebelo ou os rins. Podemos examinar órgãos somáticos anatomicamente, histologicamente e embriologicamente. Isto corresponderia à descrição fenomenológica arquetípica e à apresentação da mesma em termos histórico-comparativos. O sentido de um órgão somático só pode ser obtido a partir do questionamento teleológico” (ibid: 162).
O ato de conhecer do ser humano está, logo, limitado existencialmente a certos padrões mesmo que possua uma infinidade de possibilidades de manifestação e, de fato, é isso que acontece. A psique humana é dinâmica, viva, e por tal a sua própria paralisação pode vir a se tornar uma neurose, pois o Eu não tem total autonomia sobre a psique total do ser humano e quando o ego se mantém de maneira unilateral ele correrá o risco de uma dissociação, pois ignora o inconsciente.
Freud já havia observado que o inconsciente continua ativo mesmo quando a psique consciente não o percebe, e pode, apesar deste desconhecimento consciente, continuar a influenciar nossas vidas de maneira como acontecia com as famosas histéricas de Salpêtrière. Todavia, Freud manteve-se preso ao próprio Eu e as suas internalizações ao analisar a psique além de criar uma eterna dicotomia homem natureza manifesta no seu sistema topológico: “Id x Superego”. Temos que ter a consciência inicialmente de que o homem é homús, isto é, terra fértil, ou seja, o homem provem da própria natureza e por tal está intrinsecamente ligado a ela. A natureza não é simplesmente degradação e desgraça, algo que no máximo temos que aprendera lidar, mas a natureza é também a eterna criação, a fonte do devir.
Bem, essa é uma introdução altamente capenga e que ainda foge do assunto algumas vezes, mas espero que possa ajudar a quem se interessar no assunto e se alguém quiser podemos discutir qualquer assunto ai. Beijos e abraços!

Bibliografia:

Bicalho, Pedro. O Cárcere da Razão: o aprisionamento de sambistas no universo cartesiano. 1998.
Cardoso, H. O que você deve saber para entender Jung – 1. Fundamentos do pensamento junguiano. 2002
Jung, C. G., Memórias, Sonhos e reflexões. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2005 (2003). (1957-1960)
Jung, C. G., Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes. 2006
Jung, C. G., Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes. 1991 (1920-1)
Mello, E. Origem e Totalidade. 2002