segunda-feira, agosto 28, 2006
Do 3 e 4 à Revolução
Gostaria apenas de começar um texto sobre a questão quadratura do circulo, ou, em outros termos, do 0 e do 4, para ampliar a discussão à questão do 3 e do 4, ou 3:4. A vontade de fazer essa exposição veio de um trecho de um texto dos situacionistas colocado no blog “Um grito de recusa e desejo”, de meu amigo A.Guerra (http://www.anarchia.blogspot.com/) onde eles citam a questão da quadratura do circulo.
Certamente o texto situacionista, ao fazer uma analogia à quadratura do circulo, se refere ao absurdo, mas, ao pensarmos em termos de tradições místicas, religiosas, a quadratura do círculo se torna algo bem diferente. Provavelmente os situs fizeram essa analogia pelo fato de ser uma tentativa de conscientização (quadrado) dentro de uma ordem pré-estabelecida (circulo). Mas, tentemos desvelar algo sobre essas representações geométricas ou numéricas, independente desse texto.
O circulo, segundo a tradição cabalística, sem o ponto no meio, se refere ao número 0, à origem de tudo, é o Ain Sof (Nada criador). Significa a inconsciência primeira, a potencialidade de tudo tornar-se. O circulo ainda nos leva à mandala, palavra derivada do sânscrito que significa, justamente, círculo. Esse termo tem derivação indiana e é relacionado a termos rituais. Do circulo inicial, o 0, começamos a entrar na criação, até chegarmos à dualidade, falemos, por exemplo, sobre a tradição judaica-cristã, no Gênesis (parte do Sefer Torá ou antigo testamento):
“(0a) – Jeová estava com as trevas iniciais. No Gênesis, as trevas (ou ‘escuridão’) estavam sob as águas, e era o deus do principio e da Terra sem forma e vazia. Essa etapa é ‘la terra était deser et vide: les tenebres (s´etendainent) sur l´Abisme et le souffle d´Elohim planait sur les eaux’: água da profundeza.
(0b) – A terra estava deserta e vazia: as trevas se estendiam sobre o abismo. Surge o sopro de Deus. (...) Elohim da instabilidade ao caos e produz, ou permite como nas cosmogonias em geral, a criação”. (Melo, 2002: 262-263).”
A partir desse caos inicial representado pela circularidade vazia, passamos a ter a representação geométrica do circulo com o ponto no meio (o 1) propiciando uma base, um ponto que, a partir daí, pode gerar a dualidade da vida, e sua materialidade, caracterizados pelo número 2[1]. No Gênesis ainda lemos: “No principio criou Deus os céus e a terra. E a terra era vã e vazia, e (havia) escuridão sobre a face do abismo, e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: ‘Seja luz!’ E foi luz. E viu Deus a luz que (era) boa; e separou Deus entre a luz e a escuridão. E chamou Deus à luz, dia, e à escuridão, chamou noite: e foi tarde, e foi manhã, dia um”.
“E disse Deus: ‘Haja expansão no meio das águas e que separe entre águas e águas!’ E fez Deus a expansão; separou entre as águas debaixo da expansão e entre as águas de cima da expansão: E foi assim (...)”.
Bem, podemos observar, não só nessa descrição inicial do Gênesis, como em várias outras tradições, o inicio indiferenciado do cosmos que foi modelado pela força criadora, assim como na tradição científica essa criação se refere também a uma força, o colapso do espaço e tempo. A criação da dualidade vem logo a seguir, como observamos, como condição da consciência diferenciada, aqui já numa interpretação psicológica, pois, se temos em mente que as cosmogonias são projeções da alma e modelos arquetípicos, isso só demonstra que a vida humana passa pelas mesmas fases que a criação do universo. O bebe inicialmente é o inconsciente puro, o indiferenciado[2], vindo a tornar-se gradualmente sujeito dividido, entre consciente e inconsciente, ou entre extroversão e introversão. Da mesma forma que Deus separa as águas, a luz da escuridão, nos criamos uma consciência diferenciada para lidar com os aspectos sociais da vida, da cultura, e para tal diferenciamos um “mal” de um “bem”, um “em cima” de um “de baixo”, mesmo que as coisas não sejam de fato assim. É dessa forma que criamos uma moral social, condição necessária para, na psicanálise, estabelecermos uma estrutura neurótica ao invés de psicótica (aqui não entremos na terceira estrutura clinica, a saber: a perversão).
Bem, voltemos à questão do circulo, e durante o texto podemos continuar abordando aspectos psicológicos. Voltemos em especial aos aspectos referentes aos números 3 (pirâmide) e o 4 (quadrado). O número 3 se refere aos aspectos masculinos, e teve uma grande importância no mundo ocidental, referente ao cristianismo e seu dogma ternário (pai, filho e espírito santo), estes 3 aspectos, contudo, acabam por ignorar a condição terrena da vida, como observaram os alquimistas ocidentais ao falarem sobre o Axioma de Maria, onde Maria seria o quatro elemento do quaternário. Outro sistema de crenças que possui bases “masculinas”[3] é o Judaísmo, onde o próprio nome de D´us em hebraico é הוהי (iod, hê, vav, hê – IHVH). Este é o famoso tetragrama que, na verdade, só possui três letras, pois o hê se repete. Apartir daí voltamos ao número 3.
O ternário, contudo, na vida ocidental não se refere somente ao cristianismo. Na filosofia Hegel propôs seu sistema dialético que, como sabemos, já provinha de épocas mais arcaicas, como a Grécia antiga (e certamente, se formos fazer um estudo minucioso, poderemos perceber o pensamento dialética em sociedades mais antigas).
A questão do 3 e do 4 é uma questão discutida por muitas tradições como o “I Ching” na China, Pitágoras na Grécia e os alquimistas. A relação entre 3 e 4 é como uma relação “do ser incompleto com o completo correspondente portanto a uma portio sesquitertia, isto é, 3:4. Essa relação é conhecida na tradição alquímica ocidental como Axioma de Maria. No simbolismo onírico também desempenha papel considerável (Jung, 2006: 355-356).
O três, logo, significa a incompletude e a dicotomia, pois, sempre onde existe um triangulo inferior existe um superior[4], como atesta a alquimia. É a divisão do “ser” ou do “objeto” entre uma metade negativa e uma positiva, negando uma dessas metades ao obscuro, ao recalcado ou ao projetado. Na nossa história ocidental a parte negada foi, durante a maior parte de nossa história, a metade feminina, a parte material, a parte mundana, maternal, apesar de existir também a possibilidade, como nos atesta a história, da negação do principio masculino[5]. Essa negação do feminino pode ter tido várias influencias determinantes dentro da história, da economia, da sociologia, da psicologia e da antropologia (quanta separação) sendo projetada, pelo cristianismo dominante, de modo nefasto em diversas tradições, culturas, modos de vida que reverenciavam um outro modelo de vivencia, de organização, como o paganismo, o hermetismo, o gnosticismo, etc.
Em seu modelo patriarcal o cristianismo não pode aceitar a diferença e conviver com ela, queria a pura hegemonia e castrava as individualidades que poderiam surgir. Cabia perguntar a cristianismo onde estava o feminino, o número 4, assim como Sócrates pergunta a Timeu: “Um, dois, três –mas querido Timeu, onde fica o quatro?” (ibid: 231).
Já confeccionamos alguma coisa da questão do três e do quatro e ainda para validar historicamente a repetição desse tema poder-se-ia explorar uma infinidade de símbolos em torno desses números, assim como, por exemplo, os “quatro filhos de Hórus ou pelo quatro serafins de Ezequiel, ou ainda pelo nascimento dos quatro eons a Metra (uterus) fecundada pelo pneuma na gnose-Barbelo, ou então pela cruz formada pelo raio (= serpente) em Bohme[6], até a tetrameria da opus alchymicum em seus componentes (elementos, qualidades, graus, etc[7]). A quaternidade sempre constitui uma unidade” (ibid: 314). Ainda podemos acrescer a própria divisão da psique em 4 funções (sensação, intuição, pensamento e sentimento). Longe de nós fazer uma enciclopédia de símbolos. Temos que pensar no que pode resultar esse conhecimento em aspectos práticos, psíquica e materialmente.
Trata-se de uma conjunção dos opostos, o grande Opus. Assim como nossa psique ruma para o Si-mesmo, i.e, ruma para a conjunção da consciência com o inconsciente, para a nossa totalidade, nossa sociedade também ruma para um estado sem classes, sem a dualidade atual, onde um se sobrepõe ao outro. Não se trata entretanto de ignorar as diferenças, ao contrário, trata-se de aumentá-las. Aumentar as diferenças, a pluralidade, o respeito mutuo, o acolhimento (feminino-materno) é um dos passos de uma sociedade integrada, mas essa integração e diferenciação não é a diferenciação narcísica[8] da sociedade “pós-moderna” que mantém a diferença enquanto modo de alienação de uma mudança estrutural, a sedução do consumo e da diversidade como modos de propaganda de um modelo liberal e cool que seria o oposto de todo autoritarismo. Não. O aumento das diferenças deve vir a todo momento em conjunto com uma ligação com o social, com o Ethos do qual falava Heráclito; deve vir de um modelo comum propiciando um equilíbrio entre diferença e igualdade.
Jung nos diz sobre a questão da integração psíquica: “O modo pelo qual se obtém a harmonização de dados conscientes e inconscientes não pode ser indicado sob a forma de uma receita. Trata-se de um processo de vida irracional, que se expressa em determinados símbolos (...). Da união emergem novas situações ou estados de consciência. Designei por isso a união de opostos pelo termo ‘função transcendente’. A meta de uma psicoterapia que não se contenta apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade em direção à totalidade” (ibid, 282). Podemos a partir daí problematizar se as questões sociais não passam por um mesmo aspecto, por um aspecto dinâmico, vivo, onde revoluções, rupturas se dão a partir de momentos raízes e irracionais. Uma outra possibilidade estaria em pensarmos as rupturas como processos organizativos e racionais criados a partir da volição de uma determinada população que procura interesses específicos.
Para essa analise temos que considerar primeiramente que existem momentos que parecem ser grandemente influenciados por processos reprimidos no todo social, por exemplo, quando a classe operaria foi reprimida, massacrada, marginalizada, ela permaneceu ativa e ganhando força, foi um recalque falho do sistema social capitalista, ele não foi capaz de eliminar aquela parcela da população que, na verdade, foi o motor do próprio capitalismo no século XIX, XX. Essa população só era subliminarmente percebida, como algo que permanece no fundo da figura (classe burguesa) e assim pode ir ganhando território para reivindicar o seu espaço ou sua revolução. O mesmo acontece na psique onde“A autonomia do inconsciente começa onde se originam as emoções. Estas reações instintivas, involuntárias que perturbam a ordem racional da consciência com suas irrupções elementares. Os afetos não são ‘feitos’ através da vontade, mas acontecem” (ibid, 272).
Essa questão organizativa e de influencia foi abordada nesse blog no texto “Sociedade, Grupos e Movimentos Sociais” apesar de ser uma analise muito limitada. Acredito que não podemos olhar essa questão por apenas um foco pelo perigo de perdermos de vista a totalidade. É evidente, e isso historicamente, que existem revoltas, insurreições, revoluções que tiveram uma influencia consideravelmente maior do aspecto conjuntural do que organizativo, mas contudo, não podemos ignorar a importância fundamental da organização em quase todas revoluções, um exemplo seria a própria revolução espanhola de 1936. Sem a organização de nada adianta um momento histórico e psicológico propicio. A partir daí só podemos pensar que mesmo se acreditarmos que para vivermos em uma sociedade sem classes, sem propriedade, precisamos de um tipo de pessoa especifica (uma pessoa individuada) e de um tipo de conjuntura específico (gerado pelos problemas e antagonismos gerados pela organização e economia capitalista) só poderemos chegar a esse lugar com a organização voluntária, participativa da própria população, senão sempre incorreríamos na limitação das revoltas (por mais que elas possam causar uma mudança nas pessoas durante sua permanência).
Para terminar citemos uma passagem escrita por Jung sobre um estudo de mandalas sobre um caso de individuação que fala por si só: “A ‘quadrata figura’ que aparece como símbolo da lapis[9] no centro da mandala alquímica, cujo ponto central é Mercúrio recebe o nome de ‘mediador’, o que promove a paz entre os inimigos”.
[1] Os números pares são caracterizações do feminino e da matéria, representam a dualidade talvez pelo fato da vida surgir da mulher, o que pode ter sido, segundo Joseph Campbell, um dos motivos da satanização da mulher por tradições as quais buscavam um distanciamento da vida e do sofrimento, fatos intrínsecos à vida, como nos aponta o budismo. Antes do nascimento ou da queda do paraíso (momento primordial) tem-se a crença de que a existência era perfeita.
[2] - Segundo a tradição psicanalista o bebe começa sua vida em simbiose com a “Mãe” (função materna), sendo aos poucos separado dessa Mãe que representa, para ele, o Outro (termo lacaniano). O momento máximo dessa separação se da no complexo edipano, com a castração e a inserção do que os lacanianos chamam de “Nome-do-Pai” ou, em outros termos, a internalização da lei. Outras tradições da psicanálise consideram de maneira diferenciada esse momento, como os reichianos que, apesar de creditarem importância ao complexo edipano, crêem que existe uma necessidade de sublimação do amor edipano em uma criança de idade aproximada e não concordam, portanto, com a necessidade essencial do freudismo para a evitar a psicose, que é o recalque desse desejo, a separação do Id e a criação da lei social e do modelo ideal, o Super Eu.
[3] - Evidentemente aqui, como em todo o texto, não me refiro a um masculino biológico, mas sim a um fato psicológico; um conjunto de características que ahistoricamente determinam um modelo que se modifica historicamente. Longe de mim, portanto, propor características masculinas a homens e femininas a mulheres. Pelo contrário, creio que ambos possuem ambas as características, assim como colocam Jung e James Hillman.
[4] - Aqui podemos procurar a simbologia do número 6, que, como nos diz a tradição cabalista é caracterizado geometricamente por dois triângulos, um superior e outro inferior, representando o lado sagrado e profano do ser humano, a potencialidade de ser o sumo bem e o sumo mal.
[5] - Esse princípio masculino é chamado na psicologia junguiana de animus. O animus, ao que me parece, também foi “renegado” durante algumas fases da história, como no período matriarcal anterior. Dificilmente podemos, no entanto, observar sociedades que ignoram completamente características de um desses modelos (masculino e feminino, animus e anima), o que aconteceu e acontece freqüentemente é termos uma ênfase mais ou menos acentuada de um desses modelos.
[6] - No budismo os ‘grandes reis’, os locapala (os guardiões do mundo) constituem a quaternidade. V. Samyutta-Nikaya, I, p. 367.
[7] - “... mystica quasi distillatione, Deus aquam hanc primordialem in quatour partes ac regiones separavit et distinxit” (Como numa destilação, Deus separou e dividiu essa água primordial em quatro parte e domínios) (Sendivogius, Epístola XIII in: Bibli. Chem, curiosa II, p.496). Em Christianos (Berthelot, Alch. Grecs, VI, IX, 1, p. 393, e X, 1, p.394) o ‘ovo’, bem como a própria matéria, é constituído por quatro componentes. (O mesmo como citação de Xenócrates, op. cit., VI, XV, 8, p. 414.)
[8] - Para mais informações ler nesse blog o texto: “Seine majestat das Ich” (Sua majestade, o Eu).
[9] - Lapis nessa frase se refere a pedra, mais especificamente, à pedra filosofal. (nota minha).
Livros usados:
Jung, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, ed.vozes: 2006.
Melo, Origem e totalidade, 2002.
material do centro de estudo de cabala.
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