terça-feira, agosto 15, 2006
O Ar-condicionado.
O chão cinzento, algumas latinhas de refrigerante jogadas no chão. Ele olhava de maneira indireta e desfocada aqueles objetos. Chutava um, chutava outro. Andava pisando nos pisos quadriculados daquele asfalto comum das ruas do centro do Rio de Janeiro. Carioca, o nome do bairro. Carioca, era o que ele era. Sacou um cigarro do bolso, acendeu-o com seu isqueiro de um real. A fumaça cruzou seus óculos e vagou para o céu.
Caraca! Tenho que ver o Luis hoje. O cara ficou de me passar umas xerox´s que tenho que tirar pro trabalho.
- Renata! Cara! Como foi aquela festa? Me conta amiga! Falava gesticulando Rosa, com os braços afoitos e um sorriso sociável.
- Cara! Tu perdeu! Porra! Fiquei com o Tuninho, depois fomos pra um motel fodasso e, porra, foi foda..
João tira seus óculos escuros; abaixa o cigarro, como um sinal de continência, e olha para aquelas duas mulheres passando, como numa passarela. Olha para trás. O rebolado, o swing, as nádegas. Meu Deus! Pensa com o tesão. Da um suspiro e volta para seus pensamentos habituais: Xerox, trabalho, a porra do patrão. Olha para o relógio. “Ainda da tempo, ainda da tempo” reflete, chamando o tempo como seu advogado de defesa.
O relógio reflete o sol escaldante. Entre trinta e cinco e trinta e sete graus, acreditava ser essa a temperatura, e certamente não estava errado, o sol queimava a pele, mas, para aquele cidadão carioca, trabalhador e andarilho, aquilo era mais do que habitual. A espera do ônibus, que não tardaria a chegar, João fazia as contas de cabeça para ver a que preço ficariam as xerox´s.
Entra no ônibus. O motorista sai enquanto ele ainda está no primeiro degrau. Ele não se assusta, afinal, isso já é de praxe. Passa sem dizer bom dia para o motorista. Pega o dinheiro de sua carteira comprada no camelodromo da Uruguaiana; demora um pouco a achar as moedas certas para completar a passagem. Nisso, uma pequena fila se cria, mas nada muito anormal. O ônibus, ao ir de encontro a zona norte, se depara com uma blitz, ali por volta de Rio Comprido. Vários policiais com fuzis maiores que eles mesmos prenunciam uma guerra.
- E ai! Me conta tudo! Quero saber os detalhes! Como foi? Ele é bom de cama?
- Caralho! Tinha que ver. Mo pauzão. Achei que nem ia caber. Foi lindo.
As duas riam e riam, iam comprar uma comida no Giraffas, comeriam uma das opções dos pratos econômicos. Passam por diversos mendigos, garotos de rua e até mesmo uma pequena discussão entre camelôs, mas nem sequer reparam em nada disso. A conversa delas transbordara dentro daquele mundo particular. No final, o giraffas acaba por ficar caro, pois elas queriam economizar para comprar algumas roupas, e resolvem comer pasteis no chinês.
Um puta engarrafamento atrapalha a viajem, mas João nem se percebe do fato. Estava viajando demais para perceber essas pequenas sutilezas. Pensava em Sartre: “O homem está condenado a sua liberdade”, “O homem é essencialmente livre”: questionava-se abruptamente e entrava em conflitos aparentemente indissolúveis. Livre arbítrio e determinismo, eis do que se tratava sua reflexão. Olhou para o relógio. Da um suspiro. Merda, pensa, não vou conseguir chegar na hora e o patrão vai me dar um puta esporro.
Já tiradas as xerox´s, algumas horas depois, ele chega ao trabalho. De volta à pequena saletinha num escritório no centro da cidade. Entra na sala, com ar condicionado, do seu patrão. Olha aquele sujeito de 1,82 de altura, uns 85, 90kg, cabelos levemente grisalhos e com uma cara de que acabou de sair do inferno e lhe diz: “Chefe, já consegui trazer tudo”. Este lhe responde, com uma evidente falsa indiferença, como se responde a plebe: “Porra. Por que tanta demora? Ta ok.. ta ok... vai lá.. Ó só. O Renato não vai poder cobrir até as 21 horas, então tu fica ai, beleza?”. João olha pra baixo. Faz um olhar reflexivo, mas não pensa. Responde: “Ta bom” e sai. Demora ainda o bastante para ver seu patrão comendo um ovo, ainda cru, com casca e tudo.
Preso no serviço, como o gado às cercas, João vê da janela seu patrão sair em seu novo Vectra, com ar-condicionado, modelo novo. Começa então a pensar sobre luta de classes. Pensa sobre sua realidade. Começa a rir, apesar de não haver nada engraçado. Vê, pela janela, bonitas mulheres passando e olha seus peitos e bundas. Pensa em como seria bom estar fazendo sexo no ar condicionado essa hora, ah, ah, ah. Começa a cantar “Life is a lie” e esquece do tempo.
Ela vai para casa, após o dia de trabalho como secretária, e pensa no que gostaria de comprar no shopping. Lembra-se de que precisa pensar primeiro no que vai comer, pois já estava tarde e seu almoço tornara-se resumido a dois pasteis de queijo e um caldo de cana. Resolve ir comer espetinhos e, ademais, isso seria ótimo, pois ela estava sozinha em casa e não suportava a solidão, nem tão-pouco pensar demais consigo mesma. Na venda de espetinhos, Renata, ao menos, teria a possibilidade de conversar com algumas pessoas e, quem sabe, até tomar uma cervejinha. O seu grande dilema era que já havia perdido quase 60% da novela que passava na Globo e naquela altura ver os 40% da novela não poderia absorvê-la naquele mundo paralelo.
Uma longa chuva começa a jorrar na cidade, com grandes raios. João, o revolucionário, chega em casa bem tarde. Não pensa muito em comida, depois de tudo terá muito tempo para comer. Senta no seu pequeno cubículo. Seu quartinho bagunçado por planos e papeis, papeis e mais papeis. Tudo girava em torno do seu motivo, de sua razão de viver, o assassinato de Lula, não o crustáceo, mas o presidente. As paredes do quarto pixadas, algumas garrafas de bebida vazia completavam a decoração. Havia na sala a mesinha, de um bambu antigo, e um som com entrada para fita e cd.
Tudo já estava certo. Sexta feira, dia 23, seria o momento. Lula nesse dia faria um comício para os trabalhadores de um sindicato que ficava próximo ao seu trabalho. João pensava minuciosamente as posições, tempo, posicionamento dos guardas, o ângulo em que poderia atirar, a iluminação. Calculava como um matemático. Na verdade João era muito inteligente, contudo, sempre fora um estranho no ninho. No seu colégio os garotos não se davam muito bem com ele, pois João era muito calado – e ainda somava-se que, além de estranho, possuía um cabelo estilo porco-espinho, o que não lhe rendia popularidade. Desde moleque sempre foi um pouco excêntrico, um pouco fora da lei, das normas. De um tempo para cá, todavia, ele estava ainda mais distante das pessoas, ainda mais voltado para si, só que na forma de planos vingativos, tempestuosos. Diria-se que sua timidez bonita, com aquele toque especial de ingenuidade, havia se transfigurado em perversão. Mas era apenas a opinião popular.
“Sim... sim... tudo bem... claro que eu vou boba!” Dizia ao telefone. Sua alegria manifesta era clara. Estava muito feliz por ter sido convidada para uma festa dos sindicatos, quando o próprio Lula, quem diria, estaria presente! Renata evidentemente não era PTista ou qualquer coisa do gênero, na verdade, ela nem se importava com política. Não que ela dissesse “política é coisa de gente doida” ou “política não importa para o povo”, ela simplesmente não dizia nada. O que lhe chamava atenção era a possibilidade de estar perto de alguém famoso.
Trinnnnn... Trinnnnn..
- “Alo”. Fala João, com uma voz um pouco rouca pelo sono e pelo stress.
- “Alo”. Diz a voz firme do outro lado.
- “Oi patrão” diz João, com um toque de raiva e com um Q de submissão.
- “João. Escute. Aquela sua sexta feira de descanso... você pode remarcá-la?” É obvio que a pergunta já pressupunha a resposta:
- “É claro patrão”.
- “Ok então. Depois a gente conversa”.
- “Ta bom”
- “Tchau”.
João então começara a refletir, pós-ódio, que a sexta feira referente era a do dia 23, dia em que marcara para assassinar o presidente. Por mais surpreendente que isso parecesse, para o João revolucionário, João trabalhador nunca havia desobedecido a uma regra do seu patrão e isso parecia conspirar contra seus planos. A primeira guerra seria, portanto, interna.
O dia anda. O tempo voa. Dia 22, 2:30 da manhã, João ainda estava acordado com um enorme conflito psicológico. Transgredir as regras bem estabelecidas da sociedade formal, a qual, já havia se acostumado, submetido, ou transgredir as regras de uma parcela de sua personalidade, deixando seus planos hiper-organizados de longa data a ver navios? No final, ele acaba por dormir em meio ao mar agitado... Durante a noite sonha que estivera num lugar muito escuro, numa noite um tanto sombria, até que raios começam a cair e um deles o acerta, transformando-o em pó, um pó dourado. Ele acorda suando, e de repente, fez-se o dia. Já são 7:30 da manhã. Na verdade, ele tem que sair correndo se quiser ir ao trabalho.
Ele começa a andar de lado a lado da sala. Fica afoito. O mundo roda a mil. Berra! Berra!!! Arranca os cabelos! Essas foram apenas algumas das sensações e atitudes de João. De fato, o que ele sentiu é indescritível. Uma duvida moral que ele não estava pronto para lidar. Começara a pensar que o assassinato de Lula, por mais desgraças que este cometera, de nada adiantaria e que, não obstante, não seria humano. Humano? Pergunta-se. Humano! Vem a resposta, de alguma parte de seu corpo a qual ele não consegue identificar. Não que se tratasse de um caso de esquizofrenia ou algo congênere, mas uma dissociação do Eu, que já a tempos se ensaiava tornara-se manifesta.
Renata, ansiosa pela festa que Lula estaria presente, resolve ligar a tv, pois já estava muito perto da hora da festa e essas horas ela ficava demasiadamente ansiosa. Na tv, eis que está passando um programa muito estranho, canhestro e démodé, no entanto ela resolve vê-lo. Trata-se de uma luta de titãs, algo como um desenho infantil. Ela não sabe identificar o nome, ou coisas assim, sem nexo. Um dos titãs tem a aparência semi-humana, como um poderoso monstro com dois braços, boca, nariz, duas pernas, etc., e o outro é algo como um grande robô, bem protegido sobre seus metais, imperfurável, dir-se-ia, até ele ser perfurado pelas garras da fera. A luta titânica que se passava acabara por derrubar aqueles dois gigantes e no chão, nisso um espírito apareceu, enquanto os dois se preparavam para re-começar a luta. Ela desliga a TV, já está cansada de baboseira...
Ele treme! Treme! Parece que terá uma convulsão e começa a chorar...
- Oi amiga. Eu estou saindo de casa já! Diz Renata, abrindo a porta enquanto fala em seu celular.
- Vou sair... Eu vou matar aquele filho da puta! Diz João para si mesmo e bate a porta com toda força.
Já na rua João vê o sol cintilante, como brilhando para ofuscar o seu dia de gloria. Aquela luz quererá dizê-lo alguma coisa? Ele passa acelerado, faz sinal, mas o ônibus não para. Era evidente! O destino conspirava contra ele. Ele começa a blasfemar contra Deus. Maldito! Por que essa provação? Tu nem sequer existes! Tu és um vilão! Tu és um tirano! A mudança de tratamento muda, mas ele nem sequer se da conta, agora utilizava somente a segunda pessoa do singular.
Entra no ônibus. Engole a saliva. Passa pela roleta. Começa a rezar. Paulatinamente João vai se acalmando, mas ao invés de seus pensamentos retornarem ao normal eles cessam. Ele já não pensa em nada. Neste instante ele desce do ônibus, havia chegado no local da festa, os seguranças lhe pedem o convite, ele os mostra. Entra.
- O convite senhorita.
- Aqui está.
- Obrigado. Pode entrar.
Então ela entra, com seu vestido vermelho e seu salto alto, com suas nádegas malhadas e sua cocha torneada, sorrindo, como se algo excepcional estivesse ocorrendo. Ela muda o ar solene que poderia devir em ocasiões como essa. Alguns homens olham admirados para aquela bela forma que, por mais que se pareça superficial, ainda possui um brilho oculto que atravessa o ar.
Renata se senta numa cadeira e toma um gole de vinho, servido com quitutes por um garçom. Logo após, vê João. Acha-o atraente e fixa o olhar nele. Ela se sente estranha na verdade, pois, sentia algo muito forte o qual não conseguia identificar e, o que era para ser só tesão, transforma-se num sentimento singular ou, ao menos, invulgar.
João não vê nada. Seus olhos grudados nos dois lados daquela festa anunciam seu nervosismo, ele soa como um maratonista. Sente um medo profundo, está frio, gelado. Pensa compulsivamente: “Vou matá-lo, vou matá-lo”. Suas mãos tremem, ele come dois salgados. Sua visão se desfoca. Ele solta uma leve risada. Uma velho senhor senta ao seu lado. Ele teme que o senhor seja da policia.
- Olá. Diz o velho senhor barbudo.
- Oi. Diz a voz rouca, grogue, dissimulada de João.
- Da onde você vem? Pergunta o senhor, com um leve sorriso ameno no rosto.
- Como assim? Que diabos afinal o senhor quer saber?
- Bem, me desculpe, eu nem ao menos me apresentei. Chamo-me Thiago. Venho do norte, estou na casa de minha irmã, vim passar uns tempos aqui e vim no lugar dela, para tomar um vinho e comer uns bolinhos, he he he. Você entende, não?
- Ora senhor! Não vê que me importuna? Diz João, já totalmente fora de si. O velho, com efeito, deixará-o mais confuso do que já estava.
- Bem, não me leve a mal. Mas o jovem me parece perdido, não sabe de onde vem e nem para onde vai. Para que está aqui? Bem. Calo-me, pois vejo que não sou bem visto, he he he. Irei tomar um vinho, pois ganho mais assim. Boa sorte meu jovem. Fique com a fé.
Algo na conversa parece ter mexido com João. Ele estava tonto. Começa a se perguntar o que está fazendo naquele local estranho, grotesco. Assusta-se bruscamente na possibilidade de matar o Lula! Assusta-o somente o fato de ter pensado nisso! Será que o velho estaria dizendo algo importante? Começa a ponderar cada questão, minuciosamente. Ele olha para os dois lados, procura saber se não está sendo vigiado. Vê Renata o olhando, não compreende. Assusta-se. Ela vem na direção dele. “Que diabos, que diabos!” Pensa João, “Será que ela já sabe tudo?? Será que a policia me descobriu?”.
Ela veio andando, lentamente, e a cada passo que dava, uma fumaça branca saia do chão. Seus olhos brilhavam como a de uma felina. O batimento cardíaco de João aumentara violentamente, o tempo torna-se lerdo, muito lerdo! Ela não pensava em nada. João tremia. Renata então começava a sorrir. Ele temia sorrisos. Abriu a boca, aproximadamente uns 3 centímetros, deixando-o boquiaberto; a sua espinha estava congelada, ele, apesar de tudo, não desviava o olhar, para ele se tratava de uma guerra, para ela, de um sonho.
Ela chega perto dele. Ela o beija. Ele chora.
O sol se põe com toda força. Lula sai andando entre a população sindical que, por mais que o odeie, e todo seu partido, no momento sorri para a celebridade que ali se encontra. Fotógrafos tiram fotos, seguranças o protegem. Lula caminha para um palanque, onde começa um discurso emotivo sobre algo que, evidentemente, pouco lhe importa.
Renata segura João com um abraço, abraça-o forte, João chora muito. O tempo se fecha e começa a chover, a chuva torna-se, com o tempo, tão forte, que o discurso de Lula se torna impossível naquele local aberto. Ele vai embora, com toda sua imprensa.
- Eu ia fazê-lo, eu ia fazê-lo, diz arrependido, não por gostar de Lula, continuava a não gostá-lo, via-o, com muito realismo, como um ladrão, um usurpador, um mentiroso, vendido, entre outros adjetivos veneráveis.
- Não importa mais, não importa mais, agora estou contigo.
- E o que faremos agora?
- O que você acha que faremos?
- Eu não posso voltar para o trabalho, eu não posso voltar para aquela vida, só me resta desbravar novos caminhos, mesmo que várias barreiras me impeçam.
- Vou contigo onde você for!
Correram então e roubaram, sorrateiramente, o carro de Lula, após deixarem desmaiadas suas sentinelas, as que protegiam a carruagem. Pisaram levemente no pedal, de modo a não deixar vestígios e, quando a primeira sentinela ameaçou olhar, plan, eles já não estavam lá. Como ninjas haviam feito já um pequeno trabalho social.
João sabia que, desde aquele momento, não poderia mais travar um passo para trás, não poderia mais se subordinar e viver a vida de outros, não poderia mais servir como um escravo. Tomou as rédeas do cavalo. Voou. Eles, João e Renata, trataram de desenvolver diversas potencialidades que lhe eram inerentes e estavam latentes para sobreviverem, ou melhor, viverem e, com tal força, que seria pouco compreensível ao mais ávido economicista que crê que se é moldado pela economia e processos de produção atuais. Não. Eles não eram a antítese necessária do próprio sistema. Eles não eram a escoria social. Eles não eram adaptados aquele estado de coisas. Eles eram singulares. Únicos. Como que por um segundo portais de outro mundo tivessem sido abertos, e, nesses portais, eles não temeram entrar.
Tornar-se único, em alternativos campos, exige independência, insubordinação, força, auto-estima e parece que foi isso que eles desenvolveram.Viram o dragão surgir com toda força, viram-no com suas cascas duras, viram-no obstruindo seus destinos. Isso já era o bastante para matarem-no, com uma lança encravada no peito. E, depois de um bom tempo, tornaram-se lendas. Surgiam e desapareciam rapidamente, de estranhos ninhos, de estranhas colméias, trazendo o mel, doce.
Hoje só se pode citar, como diz um velho andarilho, uma frase do antigo João, que foi um grande herói de seu tempo. Ele costumava dizer, lembra o velho: “Não precisamos de ar-condicionado!”.
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