sexta-feira, março 27, 2009

Redução de Danos: TEXTO PARTE II

Já que ninguem comentou no último post, o que significa que este post foi relativamente um sucesso, vai a segunda parte.


UMA DROGA PARA OUTRA...

Quando as pessoas conversam sobre a terapia de substituição, acredita-se freqüentemente que não faz nenhum sentido dar aos usuários uma droga “oficial” para substituir as drogas compradas nas ruas. Ou ainda, se o uso das drogas ilegais pode continuar mesmo após passarem a receber a droga “oficial”, muitas pessoas questionaram quais são as vantagens que tal sistema de tratamento pode ter. Deixe-me explicar. Quando a metadona foi introduzida primeiramente por Dole e Nyswander nos anos 1960 nos Estados Unidos da América, acreditou-se que esta poderia substituir a heroína. A metadona não faz os pacientes se sentirem entorpecidos, pode ser tomada via oral dispensando a injeção e os efeitos duram por 24 a 36 horas, bastante longos compradas às 4 a 6 horas da heroína. Estas são as vantagens mais óbvias. Mas havia também alguns inconvenientes, por exemplo, porque a metadona também é um opiáceo, introduz dependência com síndrome de abstinência na retirada. Então, por que o trabalho? Na prática nós vimos que centenas dos milhares de heroinômanos se beneficiaram do uso da metadona. A metadona afastou-os do ambiente das drogas, eliminou o comportamento criminal, eliminou o HIV. Também poderíamos observar que o tratamento com a metadona criou um bom vínculo com os pacientes. Estes estavam realmente permanecendo no tratamento por muito mais tempo e, pelo contato regular que tiveram com a equipe, poderiam trabalhar seus problemas sociais e psicológicos. Todos os efeitos que nós temos que valorizar. Assim talvez a terapia de substituição não nos deu a “bala mágica”, mas salvou muitas vidas e contribuiu muito para o controle de um problema social e médico complexo.

Com o Pé Na Estrada...

Um dos ícones da rede de redução de danos de Amsterdã é o projeto da Metadona no Ônibus. Um programa de metadona sobre rodas por assim dizer. Por que sobre rodas? Havia diversas razões para começar tal projeto. Inicialmente, nós enfrentávamos grandes problemas com a vizinhança. Este NIMBY (Not in My Back Yard – Não no meu jardim) é um fenômeno bem conhecido. E quando se leva em consideração a quantidade de problemas causados por usuários de drogas naqueles dias, se pode somente compreender tal reação da comunidade. Entretanto, algo necessitava ser feito. Tendo uma clínica sobre rodas, nós poderíamos distribuir o ônus uniformemente nas várias regiões da cidade. Ficando em uma área específica para apenas uma hora, tornou-se tolerável para a comunidade. Além disso, um ônibus poderia entrar nas áreas onde os muitos usuários de drogas se reuniam. Aqui se deve mencionar que o atendimento médico e as sessões de aconselhamento mais prolongadas eram conduzidas em prédios usuais. Assim o ônibus era principalmente para a provisão da metadona e mais tarde também para a troca de agulhas e seringas e a distribuição dos preservativos. Somente intervenções breves ocorriam no ônibus. Naturalmente há também alguns inconvenientes em operar em uma clínica móvel. Por exemplo em um dia frio de inverno, a equipe de saúde teria que trabalhar sob circunstâncias difíceis. Os problemas técnicas com o motor também podiam acarretar grandes transtornos. Além disso, um ônibus é vulnerável a possíveis ataques violentos. Embora todos estes problemas fossem sérios, nós conseguimos superar a maioria deles, e hoje, 25 anos depois que foi lançado, o ônibus da metadona de Amsterdã ainda está com o pé na estrada todos os dias do ano.

Devolva Esta Seringa!

A primeira troca de seringas no mundo começou em 1984 em Amsterdã. Era uma iniciativa de um grupo de usuários de drogas. Estavam receosos de uma eclosão de hepatite B quando uma farmácia localizada no centro da cidade decidiu não vender mais nenhuma agulha ou seringa aos usuários de droga. O plano inicial era vendê-las nas dependências da União dos Usuários de Drogas de Amsterdã (MDHG). Entretanto, a Secretaria Municipal de Saúde não estava feliz com esta idéia, porque eram agulhas e seringas que terminariam espalhadas na rua ou – pior ainda – em parques infantis. Após alguma deliberação, um dos membros da União dos Usuários de Drogas trouxe a idéia dourada “vamos trocá-las, você traz sua seringa usada e ganha uma nova de graça”. Este foi o começo da troca de seringas, que é hoje uma medida de prevenção do HIV praticada em muitas partes do mundo, de Katmandu a São Paulo, de Melbourne a Dublin e de Nova Deli a Vancouver. O aspecto interessante da troca de seringas é ser uma faca de dois gumes: protege o ambiente do material contaminado e ajuda usuários de drogas injetáveis a proteger-se da infecção por HIV e hepatite. Desde o início da troca de seringas em Amsterdã, nós começamos a avaliar os resultados. Nós decidimos olhar três fatores:
1. Ajuda a diminuir a infecção de HIV?
2. Promove o hábito de injetar drogas, levando ao aumento do número de usuários de drogas injetáveis?
3. A troca de seringas ajuda a cooptar novos usuários para a rede de atendimento?
Um total de 150 usuários de drogas injetáveis foi entrevistado, metade usuários do programa de troca de seringas e a outra metade que não utilizava o serviço. O resultado foi bastante convincente: os usuários do programa mostraram drástica redução de agulhas e seringas compartilhadas além do que alguns nunca tinham estado em contato com a rede de atendimento. O padrão de uso de drogas variou de pessoa a pessoa: alguns aumentaram seu uso, outros reduziram e outros ficaram estáveis. Isto mostrou que a troca de seringa não teve nenhum efeito significativo no nível de uso das drogas. Desde o primeiro estudo em Amsterdã, muitos outros estudos foram realizados sobre os efeitos dos programas de troca de seringas. Os resultados foram sempre similares aos resultados deste primeiro estudo.

A Redução de Danos e o Tratamento Orientado Para a Abstinência

Inicialmente, quando a redução de danos foi introduzida em Amsterdã, aqueles que trabalham em serviços orientados para a abstinência estavam receosos que isso significasse o fim do seu negócio. Algumas comunidades terapêuticas tradicionais (TC) vieram a Amsterdã tentando convencer autoridades locais a retirar o seu apoio à redução de danos. Os partidários da redução de danos estavam prontos para rotular os partidários das TC como intolerantes, dogmáticos e ineficazes. Desta forma, existiam todos os elementos para um grande conflito. Os clientes que deixaram as comunidades terapêuticas e foram aos programas de metadona estavam cheios de suas frustrações e alimentavam as idéias dos partidários da redução de danos sobre os partidários das TC. Também, os farmacodependentes que tinham deixado o programa de metadona e foram para as TC falavam da atividade omissa dos programas de redução de danos. Tudo isto não ajudou a comunicação e a cooperação. Com base nos boatos que os programas de redução de danos desmotivavam as pessoas a ingressar nos tratamentos orientados para a abstinência, nós decidimos monitorar, de um lado, o número de pacientes que ingressavam nos programas de metadona e, de outro lado, o número de pacientes nos tratamentos orientados para a abstinência. No período de 1981 a 1988, inicialmente, o número de pessoas nos programas de metadona aumentaram drasticamente e então se tornou estável. No mesmo período, o número dos pacientes nos tramentos orientados para a abstinência cresceu mais de 200%! Assim, em vez de afastar os pacientes dos tratamentos, pareceu que os programas de redução de danos realmente atraíam as pessoas para a rede de tratamento e motivavam para os programas orientadas para a abstinência. Pode-se dizer que este trabalho pairava sobre a cena das drogas. Conversando pessoalmente com funcionários de programas orientados para a abstinência pode-se notar que muitos pacientes encaminhados dos programas de redução de danos estavam mais prontos e motivados para começar o tratamento do que os pacientes que vinham de outros encaminhamentos.

Redução de Danos em uma Perspectiva Internacional:
Redução de Danos: Um Produto de Exportação?

Nos últimos 20 anos, eu tenho falado sobre a Política de Redução de Danos Holandesa com milhares de especialistas. Eles vinham a Amsterdã para estudar nossa abordagem ou pediam que nós participássemos de conferências. Parecia que sempre que uma cidade ou um país discutia sua própria abordagem do problema de drogas ou estavam no processo de fazer grandes mudanças, alguém levantava a pergunta: “O que eles fazem em Amsterdã? Vamos verificar”. Para alguns, Amsterdã seria um exemplo de como NÃO fazer coisas. Estes pensavam que nós éramos muito permissivos com os usuários de drogas e muitos dos nossos problemas eram devidos à nossa própria omissão. Outros, entretanto, entusiasmavam-se muito com o que viram e ouviram e voltavam para casa para colocar em prática as medidas da redução de danos, adaptadas à sua própria realidade cultural e social.
Sempre nos preocupamos em não “vender” nossa abordagem, pois estávamos muito cientes de que esta abordagem tem que ser compatível com a cultura local. O que funcionou na Holanda pode não funcionar em outro local. Embora nós não devamos “vender” nossa abordagem, nós somos – é claro – orgulhosos do que estabelecemos e falamos sobre o assunto com entusiasmo. Sempre nos certificamos de ter dados suficientemente fortes para sustentar nossa proposta e sempre permitimos que as pessoas “vejam nossa cozinha”. Assim, sim, nós exportamos a redução de danos para todas as partes do mundo, mas somente “vendemos” aos sócios que se convencerem que esta abordagem seria benéfica para sua própria comunidade.

As Conferências Internacionais

Desde 1990, foram organizadas conferências internacionais anuais sobre a redução de danos relacionadas às drogas em várias partes do mundo. Estas conferências são importantes fóruns de encontro de pessoas que estão desenvolvendo novas intervenções ou procurando novos conhecimentos e apoio. Ao longo dos anos, as conferências tornaram-se mais e mais científicas. Isto estimulou abordagens de redução de danos mais baseadas em evidências. Os “crentes” agora têm que vir com dados para subsidiar seu ponto de vista. Esta é um desenvolvimento saudável. Felizmente, as conferências não se tornaram chatas ou engessadas e ainda é uma ampla sala de debates e opiniões. Um recurso muito interessante da Conferência Internacional de redução de danos é que há sempre um lugar para os usuários de drogas. Eles devem participar do comitê do programa e figurar entre os palestrantes das conferências. Como o Pat O´Hare, diretor executivo do IHRA, Associação Internacional da redução de danos, disse uma vez: “É o meu trabalho, mas são suas vidas”. Por este motivo é importante incluir os usuários de drogas no movimento da redução de danos e certificar de que nós continuamos compreendendo suas necessidades e sua realidade a fim de otimizar as intervenções.

E sobre o Álcool?

Em agosto de 2000, eu participei de um seminário em Recife, Brasil, chamado LATS (Seminário Itinerante da América Latina). Durante este seminário, a pergunta persistente era: “E sobre o álcool?” Aparentemente, o álcool era o principal problema de “drogas” e as intervenções da redução de danos eram extremamente necessárias. Baseado nisto, decidiu-se organizar uma conferência internacional sobre o álcool e a redução de danos. Esta conferência ocorreu em Recife em 2002 e foi um grande sucesso. Um total de mais de quinhentos delegados de várias partes do mundo discutiu a questão do álcool por três dias. Um relatório de conferência foi produzido e um livro foi publicado. Alguns dos achados importantes foram que a redução de danos é uma opção viável no campo do álcool e que a abordagem de redução de danos focalizaria mais nos “danos relacionados ao álcool” que na quantidade de álcool consumida. As perguntas “onde”, “como” e “quando” foram consideradas mais importantes do que a pergunta “quanto”. Esta maneira de pensar tem implicações importantes nas coletas de dados, e também na medida do sucesso de uma intervenção. No livro “Álcool e Redução de Danos”, foi descrito quais os profissionais confrontados com os dados relacionados ao álcool. Isto mostrou que os “especialistas do álcool” têm apenas um papel modesto. O trabalho principal é feito por generalistas. Frequentemente falta conhecimento suficiente sobre o álcool e os danos relacionados ao álcool, o que evidencia a necessidade de capacitação.

Nenhum comentário: