SOBRE OS TRATAMENTOS: PARTE II
“Não é talvez excessivamente absurdo afirmar que, com muita freqüência, é quando as pessoas começam a ficar mentalmente sadias que elas entram no hospital psiquiátrico” David Cooper
Considerando as considerações expostas no 1º post, identificamos que a estratégia básica do modelo hegemônico em psiquiatria só pode ser praticada a partir da uma pseudo-relação (sujeito-objeto), onde é essencialmente o psiquiatra que formula a verdade da loucura, a verdade do louco e, consequentemente, os tratamentos que permitirão a normalização, a adaptação do louco a atual sociedade. Portanto, a psiquiatria reforça, fortalece o status quo, a sociedade capitalista, a padronização das relações pessoais, em suma, toda a gama de comportamentos considerados aceitáveis num determinado contexto histórico. A neutralidade se situa como uma fantasia historicamente engendrada e alienante, na medida em que o sentido ideológico é camuflado, obscurecendo o sentido da práxis efetiva no mundo.
Ronald Laing questiona essa adaptação e a simulação de neutralidade sustentada pelo modelo positivista psiquiátrico. Não é natural a atitude de Pinel que ao “libertar os loucos”, acaba por prendê-los novamente, ou exclusivamente e institui o tratamento moral. Na invenção da psiquiatria não são questionados os efeitos histórico-sociais na emergência da loucura, ela é tomada como uma entidade per se, ahistórica e pouco influenciável em sua origem pelas relações humanas e sociais. Laing, Cooper e outros começarão a questionar justamente esta produção social, e vão considerar as patologias, se é que podemos dizer assim, da própria sociedade. Sob este viés a adaptação a uma sociedade louca seria a maior das loucuras.
Mais do que a loucura como produto de determinadas produções sociais (p.ex, intraestrutura econômica determinando a psique[1]), os antipsiquiatras vão começar a destacar como essencial na emergência do split sujeito-meio circundante, na produção de um território existencial alheio ao mundo do consenso, a influência de tipos específicos de relação interpessoal que atravessam grande parte do tecido social. Nesse viés, a loucura seria uma espécie de defesa contra a mais radical alienação, aquele onde o sujeito deixa de ser-para-si e passa a ser-para-o-outro, passa a ser uma extensão objetal para aquele olhar que, diante a insegurança ontológica do sujeito com sofrimento mental, pode significar uma perda de si. A perda de si e de sua auto-nomia produzem no sujeito uma noção de irrealidade, reforçada pelo medo de perder-se no outro. Laing vai fazer essas considerações especialmente num estudo fenomenológico da loucura, ainda na década de 50, chamado de “O Eu Dividido”, onde tipifica estes modos de perigo da perda-de-si, como, por exemplo, a absorção, a petrificação, a despersonalização e a implosão.
Então, neste primeiro momento, muito influenciado pela psicanálise e pelo existencialismo de Sartre, Laing ainda se vale mais abertamente dos rótulos: esquizofrênico, esquizofrenia, psicose, psicopatia/psicopata e o diferenciado “esquizóide”. Em Psiquiatria e Anti-psiquiatria Cooper faz a ressalva de que apesar de ter utilizado tais termos, considera que os mesmos devem ser superados[2]. No livro citado, Laing trabalha em cima de uma visão de que “o esquizofrênico” procuraria devido a uma fragilidade (insegurança ontológica) formada na infância (ontogenéticamente), se afastar das relações com os outros por estas se tornarem inviáveis. Cita casos onde pessoas que posteriormente receberiam o diagnóstico de “esquizofrenia” teriam sido tratadas como objeto, como “inexistentes” dentro de sua própria casa por seus familiares (mesmo quando há um zelo excessivo, o sujeito é um apêndice, uma extensão). Decorre desta forma de relação muitas dificuldades de auto-reconhecimento como sujeito autônomo, se não pode ser visto em sua diferença, ser reconhecido no olhar do outro, acaba acometido por sensações de irrealidade, na procura de sua identidade. Procura fazer tudo para agradar, repete comportamentos, e muitas vezes é aquela pessoa ideal, onde esse = percipi (ser é ser percebido), no entanto, seu verdadeiro Self encontra-se interiorizado, e tudo o que desvela, mostra de si, é uma fachada resultante de uma disjunção “Self” – “Falso Self”. Protege seu verdadeiro Self no mais profundo, mas esta defesa é desde sempre falha, na medida em que a) o falso-self progressivamente aumenta sua autonomia; b) uma enorme angustia é vivida na crescente sensação de irrealidade; c) toda realidade que é escondida se torna, através de uma constante, quiçá obsessiva, consciência de si, uma grande culpa e medo, culpa por não ser quem aparenta ser (sente-se cada vez mais tenebroso, na medida em que aumenta a raiva/ ódio), e teme que o olhar do outro atravesse sua couraça, isto é, sua persona e revele o irrevelável. Daí decorre uma série de fugas do outro. O self quer se ver descoberto, mas esta descoberta é tremendamente angustiante e o caminho muitas vezes é de reforço do falso-self, num caminho cíclico de auto-perpetuação da angustia até o aparecimento dos chamados sintomas prodrômicos ou a crise psicótica.
Como podem ver os esquemas lainguianos da década de 50 ainda permanecem com algumas categorias que serão re-vistas posteriormente. O termo anti-psiquiatria nasce em 67 quando Cooper escreve: “Psiquiatria e Anti-psiquiatria”, momento onde ele e também Laing estavam desenvolvendo métodos de terapia alternativos trabalhando tanto com os pacientes como seus familiares, daí nasce uma experiência bem interessante, a chamada vila 61. Essa experiência é influenciada pela comunidade terapêutica de Maxwell Jones que começara na Inglaterra numa tentativa de re-formular o espaço asilar (consagrado como experiência em 1959). De acordo com Paulo Amarante, citado por Ana Paula Gujor[3] em sua dissertação de mestrado, a comunidade terapêutica se caracterizava como “um processo de reformas institucionais, predominantemente restritas ao hospital psiquiátrico, e marcadas pela adoção de medidas administrativas democráticas, participativas e coletivas, objetivando a transformação da dinâmica institucional asilar”. A vila 61, embora em seu início tenha sido influenciada pelas dinâmicas da comunidade terapêutica, já se vale de um modelo teórico relacional e existencial. Nesta experiência original a suposição básica é que a esquizofrenia não é em si uma doença, uma patologia do sujeito, mas que a questão está na relação entre os membros de uma família e, de forma mais ampla, entre os membros de uma determinada comunidade. Cooper nos diz que: “A esquizofrenia, se é que significa alguma coisa, constitui m modo mais ou menos característico de comportamento grupal perturbado. Não existem esquizofrênicos”. Neste caso o sujeito que apresenta os assim nomeados sintomas psicóticos seria muito mais o bode expiatório do que um doente.
A vila 61 foi fundada em 1962 e Cooper manteve-se em sua direção até 1966. Ela foi fundada dentro de um grande hospital de “doenças mentais” ao noroeste de Londres. De acordo com Cooper: “A tarefa que escolhi (...) consiste em desenvolver uma unidade especificamente orientada no sentido do problema dos jovens, que recentemente ganharam o rótulo de ‘esquizofrenia’, na qual a abordagem se basearia numa compreensão da esquizofrenia, não como entidade mórbida, porém, como certo conjunto mais ou menos especificável de padrões de interação pessoal, ou seja, da esquizofrenia não como acontecendo em uma pessoa, mas, ao invés, como algo entre pessoas. Iríamos tentar, de fato, prescindir do que Don Jackson descreveu como ‘essa maldição da psiquiatria moderna, o paciente identificado’”. Os métodos de trabalho, portanto, focavam-se em A) trabalhos de grupo orientados não analiticamente ; B) terapia familiar ; C) grupo entre os funcionários, colocando em questão a irracionalidade institucional entre os próprios técnicos, isto é, aonde ainda estes sustentariam antigos estereótipos do imaginário social, como a idéia de que o “esquizofrênico” é violento, perturbado, contagioso, etc. Muitas vezes a violência do dito esquizofrênico se manifesta quando o mesmo é exposto a uma violência real (p.ex, a camisa de força), e repressões não passiveis de explicação clara, desde a repressão física, até a química.
Outro foco importante nesta experiência é o valor dado a autonomia. Acreditava-se que se deixado livre para escolher o “doente mental” ficaria o dia inteiro, e todo dia, deitado na cama e não faria absolutamente nada. Cooper organiza a vila 61 dando uma autonomia até então nunca vista para os pacientes, onde poderiam levantar a hora que quisessem de suas camas, e tivessem uma liberdade ampliada de ações. O resultado da ação causou tanto grandes tensões, inclusive entre vários enfermeiros, como também desfez alguns mitos, na medida em que muitos passaram a arrumar suas camas, fazer muitas coisas com maior autonomia, embora, acordassem mais tarde. Não seguiam a risca o “esperado” pelo desejo dos outros e, por outro lado, alcançavam crescentes “graus” de autonomia. Se esse tipo de rebeldia (não fazer o esperado) é característico, isso se deve, em parte, a forma como o serviço se organiza; muitos dos pacientes, se seguirmos o modelo existencial de Laing, eram extremamente obedientes e adaptados aos desejos dos pais ou sociais sobre eles antes de seus “surtos”. Teríamos a imagem da falta de autonomia que continua no hospital psiquiátrico, até de forma radicalizada; doravante toda a vida do sujeito é ordenada por outros, fortalecendo ou produzindo o que Goofman em “Manicômios, Prisões e Conventos” chama de “mortificação do eu”. Existe um tipo de sofrimento, alienação que mais do que tendo sua causa em suas relações familiares ou com a sociedade mais ampla, se funda na própria instituição asilar, o que foi chamado de neurose institucional e posteriormente de “o duplo da doença” por Basaglia na experiência da psiquiatria democrática italiana. Podemos concluir que a instituição manicomial radicaliza o tipo de situação agenciadora do surto e do “fracasso” do sujeito dentro de sua família. Então nessa rebeldia, apesar de seus aparentes “sintomas negativos” como “embotamento afetivo” se trata, em alguns casos, de clara insubmissão e um movimento de saúde, uma ultrapassagem da condição alienada e submissa anterior.
Se levarmos adiante esta idéia, o terapeuta deve estar ao lado da pessoa em sofrimento mental, mais do que ordenando sua experiência, lhe dando todas as formas prontas para resolução de problemas, o que implicaria em adaptação ao molde do terapeuta ou de um âmbito mais ou menos geral da sociedade. Em determinado momento Laing e Cooper comparam a experiência do louco com a desintegração, o desmembramento pelo qual passavam os xamãs, muito embora, os xamãs tivessem uma forma mais adequada de lidar com tal experiência. Se em nossa sociedade não encontramos mais as fórmulas para lidar com estas experiências, cabe ao terapeuta acompanhá-las e situar-se com sua presença, e com sua compreensão para facilitar que a viagem que o “louco” começou suceda da melhor forma possível. Cooper nos diz que “A experiência psicótica, contando com orientação correta, é capaz de conduzir a um estado humano mais avançado, porém, muito freqüentemente, é convertida pela experiência psiquiátrica num estado de paralisia e de estultificação da pessoa”. Se a experiência da loucura se compara a catábasis[4], deve haver uma anábasis (subida ou saída do Hades). O ditado Zen diz: “Aquele que perdeu sua vida a encontrará”, mas em alguns casos, a perda acomete o sujeito de uma tal forma que o mesmo não encontra forças em si mesmo para reagir ao dilaceramento e não consegue re-estruturar-se e, ainda pior, acaba encontrando ao invés de um curandeiro um psiquiatra que o encherá de psicofármacos para obnubilar a experiência, um psicólogo que lidará com ele como se fosse de sua “estrutura” a psicose enquanto uma realidade factual. Não se quer ignorar com isso todos os fatores que podem favorecer uma experiência de sofrimento atroz, mas re-lembrar a base existencialista: além de tudo que fizeram com você, importa o que você faz com tudo isso que fizeram de você. E quais são os instrumentos atuais para lidar com tal experiência de forma mais promissora?
Situamo-nos aqui no lugar da atenção ao outro, ao ponto de Laing nos contar que acredita que o terapeuta ideal é aquele que age como um mestre zen. A não-ação, wu wei, em alguns momentos é um respeito ao silêncio e ao tempo do outro, uma forma de relação não diretiva. A posição é de criação de um espaço de continência, de cuidado, onde “o caminho que se pode falar não é o caminho”. São belas as palavras de Laing ao nos dizer que compreensão, mais do que a dupla análise interpretativa (redução histórica + consideração da situação presente) é amor. Acerca da não ação, citemos Laing em “Sobre Loucos e Sãos”:
“Estou convencido, porém, de que alguns experimentam estados mentais extremamente desagradáveis. Essencialmente, a única maneira que essas pessoas têm para sair deles é conquistar a capacidade de olhar, ou seja, simplesmente prestar atenção ao que acontece, sem fazer qualquer coisa. Chame de Zen, Chan, Satipathana, não importa. Se eles conseguem, de uma maneira ou de outra, abandonar-se sem sobrepor seus caprichos, então de todo este caos parece começar a surgir uma migalha de ordem”.
Para finalizar, lembremos que David Cooper nos fala acerca da necessidade de novos modelos arquitetônicos - políticos no atendimento, em sua época fundamentalmente baseados no isolamento e no âmbito asilar-hospitalar, e que os espaços de tratamentos caminhem em direção a comunidade, o que será radicalizado e efetivado com a psiquiatria democrática de Franco Basaglia a experiência italiana, que tanto influenciou a orientação da saúde mental brasileira. Caso o aspirante a escrivinhão aqui não morra na praia, a experiência da psiquiatria italiana será um dos assuntos futuros aqui no Blog.
Inté 2 pessoar!
[1] - Essa modalidade de teleologia é considerada fruto da razão analítica na leitura da Sartre feita por Laing e Cooper, na medida em que o positivismo e sua razão produzem esse tipo de esterilização do conhecimento, tomando totalizações como totalidades, desistoricizando, por conseguinte, a história (a relativização dos aboslutos). Contrapõem-se a esta leitura fatalista a concepção da razão dialética.
[3] - Gujor, Ana Paula. Os Centros de Atenção Psicossocial: Um estudo sobre a transformação do modelo assistencial em saúde mental, 2003.
“Não é talvez excessivamente absurdo afirmar que, com muita freqüência, é quando as pessoas começam a ficar mentalmente sadias que elas entram no hospital psiquiátrico” David Cooper
Considerando as considerações expostas no 1º post, identificamos que a estratégia básica do modelo hegemônico em psiquiatria só pode ser praticada a partir da uma pseudo-relação (sujeito-objeto), onde é essencialmente o psiquiatra que formula a verdade da loucura, a verdade do louco e, consequentemente, os tratamentos que permitirão a normalização, a adaptação do louco a atual sociedade. Portanto, a psiquiatria reforça, fortalece o status quo, a sociedade capitalista, a padronização das relações pessoais, em suma, toda a gama de comportamentos considerados aceitáveis num determinado contexto histórico. A neutralidade se situa como uma fantasia historicamente engendrada e alienante, na medida em que o sentido ideológico é camuflado, obscurecendo o sentido da práxis efetiva no mundo.
Ronald Laing questiona essa adaptação e a simulação de neutralidade sustentada pelo modelo positivista psiquiátrico. Não é natural a atitude de Pinel que ao “libertar os loucos”, acaba por prendê-los novamente, ou exclusivamente e institui o tratamento moral. Na invenção da psiquiatria não são questionados os efeitos histórico-sociais na emergência da loucura, ela é tomada como uma entidade per se, ahistórica e pouco influenciável em sua origem pelas relações humanas e sociais. Laing, Cooper e outros começarão a questionar justamente esta produção social, e vão considerar as patologias, se é que podemos dizer assim, da própria sociedade. Sob este viés a adaptação a uma sociedade louca seria a maior das loucuras.
Mais do que a loucura como produto de determinadas produções sociais (p.ex, intraestrutura econômica determinando a psique[1]), os antipsiquiatras vão começar a destacar como essencial na emergência do split sujeito-meio circundante, na produção de um território existencial alheio ao mundo do consenso, a influência de tipos específicos de relação interpessoal que atravessam grande parte do tecido social. Nesse viés, a loucura seria uma espécie de defesa contra a mais radical alienação, aquele onde o sujeito deixa de ser-para-si e passa a ser-para-o-outro, passa a ser uma extensão objetal para aquele olhar que, diante a insegurança ontológica do sujeito com sofrimento mental, pode significar uma perda de si. A perda de si e de sua auto-nomia produzem no sujeito uma noção de irrealidade, reforçada pelo medo de perder-se no outro. Laing vai fazer essas considerações especialmente num estudo fenomenológico da loucura, ainda na década de 50, chamado de “O Eu Dividido”, onde tipifica estes modos de perigo da perda-de-si, como, por exemplo, a absorção, a petrificação, a despersonalização e a implosão.
Então, neste primeiro momento, muito influenciado pela psicanálise e pelo existencialismo de Sartre, Laing ainda se vale mais abertamente dos rótulos: esquizofrênico, esquizofrenia, psicose, psicopatia/psicopata e o diferenciado “esquizóide”. Em Psiquiatria e Anti-psiquiatria Cooper faz a ressalva de que apesar de ter utilizado tais termos, considera que os mesmos devem ser superados[2]. No livro citado, Laing trabalha em cima de uma visão de que “o esquizofrênico” procuraria devido a uma fragilidade (insegurança ontológica) formada na infância (ontogenéticamente), se afastar das relações com os outros por estas se tornarem inviáveis. Cita casos onde pessoas que posteriormente receberiam o diagnóstico de “esquizofrenia” teriam sido tratadas como objeto, como “inexistentes” dentro de sua própria casa por seus familiares (mesmo quando há um zelo excessivo, o sujeito é um apêndice, uma extensão). Decorre desta forma de relação muitas dificuldades de auto-reconhecimento como sujeito autônomo, se não pode ser visto em sua diferença, ser reconhecido no olhar do outro, acaba acometido por sensações de irrealidade, na procura de sua identidade. Procura fazer tudo para agradar, repete comportamentos, e muitas vezes é aquela pessoa ideal, onde esse = percipi (ser é ser percebido), no entanto, seu verdadeiro Self encontra-se interiorizado, e tudo o que desvela, mostra de si, é uma fachada resultante de uma disjunção “Self” – “Falso Self”. Protege seu verdadeiro Self no mais profundo, mas esta defesa é desde sempre falha, na medida em que a) o falso-self progressivamente aumenta sua autonomia; b) uma enorme angustia é vivida na crescente sensação de irrealidade; c) toda realidade que é escondida se torna, através de uma constante, quiçá obsessiva, consciência de si, uma grande culpa e medo, culpa por não ser quem aparenta ser (sente-se cada vez mais tenebroso, na medida em que aumenta a raiva/ ódio), e teme que o olhar do outro atravesse sua couraça, isto é, sua persona e revele o irrevelável. Daí decorre uma série de fugas do outro. O self quer se ver descoberto, mas esta descoberta é tremendamente angustiante e o caminho muitas vezes é de reforço do falso-self, num caminho cíclico de auto-perpetuação da angustia até o aparecimento dos chamados sintomas prodrômicos ou a crise psicótica.
Como podem ver os esquemas lainguianos da década de 50 ainda permanecem com algumas categorias que serão re-vistas posteriormente. O termo anti-psiquiatria nasce em 67 quando Cooper escreve: “Psiquiatria e Anti-psiquiatria”, momento onde ele e também Laing estavam desenvolvendo métodos de terapia alternativos trabalhando tanto com os pacientes como seus familiares, daí nasce uma experiência bem interessante, a chamada vila 61. Essa experiência é influenciada pela comunidade terapêutica de Maxwell Jones que começara na Inglaterra numa tentativa de re-formular o espaço asilar (consagrado como experiência em 1959). De acordo com Paulo Amarante, citado por Ana Paula Gujor[3] em sua dissertação de mestrado, a comunidade terapêutica se caracterizava como “um processo de reformas institucionais, predominantemente restritas ao hospital psiquiátrico, e marcadas pela adoção de medidas administrativas democráticas, participativas e coletivas, objetivando a transformação da dinâmica institucional asilar”. A vila 61, embora em seu início tenha sido influenciada pelas dinâmicas da comunidade terapêutica, já se vale de um modelo teórico relacional e existencial. Nesta experiência original a suposição básica é que a esquizofrenia não é em si uma doença, uma patologia do sujeito, mas que a questão está na relação entre os membros de uma família e, de forma mais ampla, entre os membros de uma determinada comunidade. Cooper nos diz que: “A esquizofrenia, se é que significa alguma coisa, constitui m modo mais ou menos característico de comportamento grupal perturbado. Não existem esquizofrênicos”. Neste caso o sujeito que apresenta os assim nomeados sintomas psicóticos seria muito mais o bode expiatório do que um doente.
A vila 61 foi fundada em 1962 e Cooper manteve-se em sua direção até 1966. Ela foi fundada dentro de um grande hospital de “doenças mentais” ao noroeste de Londres. De acordo com Cooper: “A tarefa que escolhi (...) consiste em desenvolver uma unidade especificamente orientada no sentido do problema dos jovens, que recentemente ganharam o rótulo de ‘esquizofrenia’, na qual a abordagem se basearia numa compreensão da esquizofrenia, não como entidade mórbida, porém, como certo conjunto mais ou menos especificável de padrões de interação pessoal, ou seja, da esquizofrenia não como acontecendo em uma pessoa, mas, ao invés, como algo entre pessoas. Iríamos tentar, de fato, prescindir do que Don Jackson descreveu como ‘essa maldição da psiquiatria moderna, o paciente identificado’”. Os métodos de trabalho, portanto, focavam-se em A) trabalhos de grupo orientados não analiticamente ; B) terapia familiar ; C) grupo entre os funcionários, colocando em questão a irracionalidade institucional entre os próprios técnicos, isto é, aonde ainda estes sustentariam antigos estereótipos do imaginário social, como a idéia de que o “esquizofrênico” é violento, perturbado, contagioso, etc. Muitas vezes a violência do dito esquizofrênico se manifesta quando o mesmo é exposto a uma violência real (p.ex, a camisa de força), e repressões não passiveis de explicação clara, desde a repressão física, até a química.
Outro foco importante nesta experiência é o valor dado a autonomia. Acreditava-se que se deixado livre para escolher o “doente mental” ficaria o dia inteiro, e todo dia, deitado na cama e não faria absolutamente nada. Cooper organiza a vila 61 dando uma autonomia até então nunca vista para os pacientes, onde poderiam levantar a hora que quisessem de suas camas, e tivessem uma liberdade ampliada de ações. O resultado da ação causou tanto grandes tensões, inclusive entre vários enfermeiros, como também desfez alguns mitos, na medida em que muitos passaram a arrumar suas camas, fazer muitas coisas com maior autonomia, embora, acordassem mais tarde. Não seguiam a risca o “esperado” pelo desejo dos outros e, por outro lado, alcançavam crescentes “graus” de autonomia. Se esse tipo de rebeldia (não fazer o esperado) é característico, isso se deve, em parte, a forma como o serviço se organiza; muitos dos pacientes, se seguirmos o modelo existencial de Laing, eram extremamente obedientes e adaptados aos desejos dos pais ou sociais sobre eles antes de seus “surtos”. Teríamos a imagem da falta de autonomia que continua no hospital psiquiátrico, até de forma radicalizada; doravante toda a vida do sujeito é ordenada por outros, fortalecendo ou produzindo o que Goofman em “Manicômios, Prisões e Conventos” chama de “mortificação do eu”. Existe um tipo de sofrimento, alienação que mais do que tendo sua causa em suas relações familiares ou com a sociedade mais ampla, se funda na própria instituição asilar, o que foi chamado de neurose institucional e posteriormente de “o duplo da doença” por Basaglia na experiência da psiquiatria democrática italiana. Podemos concluir que a instituição manicomial radicaliza o tipo de situação agenciadora do surto e do “fracasso” do sujeito dentro de sua família. Então nessa rebeldia, apesar de seus aparentes “sintomas negativos” como “embotamento afetivo” se trata, em alguns casos, de clara insubmissão e um movimento de saúde, uma ultrapassagem da condição alienada e submissa anterior.
Se levarmos adiante esta idéia, o terapeuta deve estar ao lado da pessoa em sofrimento mental, mais do que ordenando sua experiência, lhe dando todas as formas prontas para resolução de problemas, o que implicaria em adaptação ao molde do terapeuta ou de um âmbito mais ou menos geral da sociedade. Em determinado momento Laing e Cooper comparam a experiência do louco com a desintegração, o desmembramento pelo qual passavam os xamãs, muito embora, os xamãs tivessem uma forma mais adequada de lidar com tal experiência. Se em nossa sociedade não encontramos mais as fórmulas para lidar com estas experiências, cabe ao terapeuta acompanhá-las e situar-se com sua presença, e com sua compreensão para facilitar que a viagem que o “louco” começou suceda da melhor forma possível. Cooper nos diz que “A experiência psicótica, contando com orientação correta, é capaz de conduzir a um estado humano mais avançado, porém, muito freqüentemente, é convertida pela experiência psiquiátrica num estado de paralisia e de estultificação da pessoa”. Se a experiência da loucura se compara a catábasis[4], deve haver uma anábasis (subida ou saída do Hades). O ditado Zen diz: “Aquele que perdeu sua vida a encontrará”, mas em alguns casos, a perda acomete o sujeito de uma tal forma que o mesmo não encontra forças em si mesmo para reagir ao dilaceramento e não consegue re-estruturar-se e, ainda pior, acaba encontrando ao invés de um curandeiro um psiquiatra que o encherá de psicofármacos para obnubilar a experiência, um psicólogo que lidará com ele como se fosse de sua “estrutura” a psicose enquanto uma realidade factual. Não se quer ignorar com isso todos os fatores que podem favorecer uma experiência de sofrimento atroz, mas re-lembrar a base existencialista: além de tudo que fizeram com você, importa o que você faz com tudo isso que fizeram de você. E quais são os instrumentos atuais para lidar com tal experiência de forma mais promissora?
Situamo-nos aqui no lugar da atenção ao outro, ao ponto de Laing nos contar que acredita que o terapeuta ideal é aquele que age como um mestre zen. A não-ação, wu wei, em alguns momentos é um respeito ao silêncio e ao tempo do outro, uma forma de relação não diretiva. A posição é de criação de um espaço de continência, de cuidado, onde “o caminho que se pode falar não é o caminho”. São belas as palavras de Laing ao nos dizer que compreensão, mais do que a dupla análise interpretativa (redução histórica + consideração da situação presente) é amor. Acerca da não ação, citemos Laing em “Sobre Loucos e Sãos”:
“Estou convencido, porém, de que alguns experimentam estados mentais extremamente desagradáveis. Essencialmente, a única maneira que essas pessoas têm para sair deles é conquistar a capacidade de olhar, ou seja, simplesmente prestar atenção ao que acontece, sem fazer qualquer coisa. Chame de Zen, Chan, Satipathana, não importa. Se eles conseguem, de uma maneira ou de outra, abandonar-se sem sobrepor seus caprichos, então de todo este caos parece começar a surgir uma migalha de ordem”.
Para finalizar, lembremos que David Cooper nos fala acerca da necessidade de novos modelos arquitetônicos - políticos no atendimento, em sua época fundamentalmente baseados no isolamento e no âmbito asilar-hospitalar, e que os espaços de tratamentos caminhem em direção a comunidade, o que será radicalizado e efetivado com a psiquiatria democrática de Franco Basaglia a experiência italiana, que tanto influenciou a orientação da saúde mental brasileira. Caso o aspirante a escrivinhão aqui não morra na praia, a experiência da psiquiatria italiana será um dos assuntos futuros aqui no Blog.
Inté 2 pessoar!
[1] - Essa modalidade de teleologia é considerada fruto da razão analítica na leitura da Sartre feita por Laing e Cooper, na medida em que o positivismo e sua razão produzem esse tipo de esterilização do conhecimento, tomando totalizações como totalidades, desistoricizando, por conseguinte, a história (a relativização dos aboslutos). Contrapõem-se a esta leitura fatalista a concepção da razão dialética.
[3] - Gujor, Ana Paula. Os Centros de Atenção Psicossocial: Um estudo sobre a transformação do modelo assistencial em saúde mental, 2003.
[4] - Descida ao Hades no mundo Grego, aliás, a passagem de nível da Terra o Hades é feita através, p.ex, de Hermes, um psicopompo, um atravessador de dimensões, daí, hermenêutica. A hermenêutica também influenciou, até onde me é dado saber, as formulações anti-psiquiatricas.
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