quinta-feira, agosto 03, 2006
Introdução a Epistemologia Junguiana.
Como eu estou escrevendo um texto um pouco mais abrangente sobre o assunto, que de certo não ficará pronto este ano, tinha pensado em meus botões em fazer um pequeno resumo aqui para os interessados. Mas, me perguntei: quem se interessa por epistemologia? Em especial, em epistemologia e Jung. Sobre essas duvidas achei que o texto passaria pelo blog apenas como mais um dos textos que só servem para eu dar, quando muito, uma pequena revisada em alguns conhecimentos e fazer uma pequena ginástica nos meus dedos. Mas, como eu perguntei no ultimo post sobre a validade de um tal texto e um grande número incontido de fãs soltou fogos diante desta possibilidade, só me resta obedecer-lhes cegamente.
Modelo Científico Clássico e Jung
Ignoremos, a priori, o período grego e escolástico para não complicar muito as coisas, até porque já fiz um pequeno texto: “Epistemologia e os gregos” que, apesar de bem superficial há de fornecer o mínimo de informação sobre o assunto. Sabendo-se que epistemologia se refere à ciência da ciência – uma ciência dos conhecimentos validos -, ou, de maneira mais contemporânea, uma ciência dos conhecimentos provisórios, podemos prosseguir.
A ciência clássica, que teve seu grande expoente em Newton, foi especialmente influenciada por Descartes, além de teóricos positivistas e empiristas como: Locke, Berkley e Hume. O modelo cientifico clássico foi o modelo que era hegemônico enquanto Jung fazia sua formação, e começou sua ascensão quando “pela primeira vez Tomas de Aquino leu Aristóteles, diretamente do grego”. (Cardoso, 2002). Descartes foi especialmente influente no que se refere ao modelo de causalidade cientifico, ou seja, na procura das causas dos efeitos materiais.
Pode-se dizer que todo esse modelo foi baseado num culto a razão, onde “A razão conceituada segundo a cultura ocidental origina-se a partir da palavra latina ratio, derivação do verbo reor, que significa contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular. Assim, a própria origem etimológica da razão denota um sentido de ordenar, pôr em um modo ordenado” (Bicalho, 1998: 31). Certamente para Descartes a razão deveria ter um valor explicito, pois para ele a validade do real derivava da alma, onde ele conceituava uma dicotomia entre res extensa e res cogito, ou, realidade da matéria e realidade do pensamento, não é por menos que a sua máxima foi o famoso: “Cogito, ergo sum”, “Penso, logo existo”.
Descartes havia então proposto leis fundamentais, que seriam: “principio da identidade, da não contradição, do terceiro excluído e da razão suficiente” (ibid: 33) ainda segundo Bicalho “O principio da identidade anuncia que ‘A é A’, ou ‘o que é, é’: afirmando que uma coisa só pode ser conhecida e pensada se for percebida por uma identidade. O principio da não contradição, cujo enunciado é ‘A é A e é impossível que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, não A’ (...) O principio do terceiro excluído enuncia que ‘Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade’, definindo como princípio a decisão de um dilema no formado ‘ou isto ou aquilo’, exigindo apenas uma das duas alternativas como verdadeiras. E, por fim, há o principio da razão suficiente, que afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir e para acontecer, e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecida pela nossa razão”. (ibid: 33, 34).
Emitida a razão, como essencial no ato de conhecer, uma grande mudança ainda seria alçada para o desenvolvimento da ciência clássica, em especial com Locke. Enquanto o modelo de Descartes ajudava a fundamentar uma ciência matemática, por exemplo, onde poder-se-ia alienar qualquer inteligência do mundo externo, foi com Locke que os fundamentos filosóficos da famosa extroversão ocidental se deram, a partir daí todo conhecimento tornara-se modelado pelo mundo, eis que temos a perola de Locke: “Nihil est in intelectu quod non antea fuerit in sensu” (Nada esta no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos).
Vejamos onde Jung fica nesse balaio de gato, pois senão entraremos nas nuances desses pensamentos e nos perderemos no texto. Demos os contornos introdutórios ao pensar positivista, o qual moldou a ciência dita clássica, todavia, ainda seria mais interessante darmos uma pequena definição de positivismo e do posterior pensamento antipositivista. “O anti-positivista – é relativista, entendendo o mundo a partir dos indivíduos que o integram, só se podendo captar o significado de uma situação do ponto de vista do quadro de referência de seus participantes. Não existe qualquer conhecimento objetivo, podendo-se no máximo se chegar a um acordo inter-subjetivo” (Cardoso, 2002) enquanto “o positivista – procura explicar e predizer o que acontece no mundo, buscando regularidades e relacionamentos causais, através de pesquisas experimentais e da possibilidade de falsificação de hipóteses. Para ele, o conhecimento é acumulativo”. (ibid).
Sem duvidas Jung começou suas pesquisas influenciado por um modelo causalista e nomotético, tanto que fazia testes experimentais de associação de palavras a fim de comprovar as teses freudianas de inconsciência. Jung então diz em sua biografia: “Com as experiências de associações (1903), começou minha atividade científica propriamente dita. Considero-as como meu primeiro trabalho realizado na linha das ciências naturais. Foi então que comecei a exprimir meus pensamentos próprios. Depois dos Estudos Diagnósticos sobre as Associações (1903) apareceram duas publicações psiquiátricas: Psicologia da Demência Precoce (1907) e O conteúdo das Psicoses (1908). Em 1912 apareceu meu livro Metamorfose e Símbolos da Libido, que pôs fim à amizade que me ligava a Freud. Nesse momento – nolens volens – comecei a seguir o meu próprio caminho”. (Jung, 2005: 182).
Jung, deste modo, começou a analisar o conhecimento a partir de pesquisas experimentais e causais, sustentando especialmente sua tese de complexos inconscientes. Contudo, não demorou muito para Jung partir a outro caminho, um caminho próprio. Enquanto Freud, que foi uma influencia fundamental, permanecia nesse modelo cartesiano, a fim de encontrar as causas dos traumas – chegando, a partir daí, no complexo de Édipo -, Jung já observava outros aspectos da experiência, convencido de que, em certas situações a tentativa de encontrar causas nas ciências humanas só pode levar a metafísica ou à subordinação dos fatos a construção teórica.
Fenomenologia, Tipos Psicológicos e Autonomia da Alma.
“É uma tirania intolerável supor que existe apenas uma psicologia ou apenas um principio psicológico fundamental; isto é um preconceito pseudocientífico do homem comum. Fala-se sempre do homem e de sua ‘psicologia’. Também se fala da realidade como se existisse apenas esta única. Realidade é o que atua na alma humana, e não o que alguns acham que lá atue, fazendo generalizações pré-concebidas” Carl Gustav Jung (Tipos Psicológicos, 1920-21)
Podemos dizer que além da influencia freudiana na formação de Jung ele contava com outras influencias significativas como a de Pierre Janet, contudo, diferente de Freud e Janet, que tiravam suas conclusões através do estudo da neurose, Jung trabalhou um grande período na “área da psicose”, e, como Janet, adotava um método muito mais descritivo do que causal. Janet não procurava as causas, mas descrevia seus fenômenos criando assim a possibilidade de estabelecimento de modelos, quadros de patologia e divisões analíticas. Da mesma forma Jung seguiu por um caminho onde pudesse observar o fenômeno como se apresenta e não como pressupõe algum postulado abstrato ou personalista.
Ele então se valeu do empirismo, i.e, se ateve aos fatos e procurou utilizar o método fenomenológico para estudar a alma. Ele nos diz no ensaio “Mente e Terra” “Minha concepção da alma nada tem a ver com isto, porque é puramente fenomenológica... estou simplesmente tentando apreender cientificamente os fenômenos psíquicos elementares que subjazem em nossa crença nas almas” (Jung apud Cardoso, civilization in transition, 1978: 43) Para tal, cada caso passa a ser um caso e, antes de especularmos através de uma teoria devemos esperar que o fenômeno nos comunique quem ele é, o que ele é (redução eidética). Na interpretação dos sonhos, por exemplo, enquanto Freud se ateve as suas interpretações sexuais, como falar que uma chave entrando numa fechadura significa um ato sexual, Jung tentava não fugir do sonho, da observação do fenômeno que se mostra, tentando fazer uma hermenêutica, ou seja, um estabelecimento de contexto e da intencionalidade daquela imagem que se desvela. Então a própria interpretação do sonho só pode começar de maneira horizontal através da própria pessoa, ou seja, através de associações com sua própria vida para depois tornar-se mais complexa, social e histórica.
Contudo, não bastando a observação de um único fenômeno, pois ao mesmo tempo que há algo que nos torna singulares, assim como cada arvore é uma arvore, cada ser é um ser, há também um modelo básico que perpassa tanto a natureza como nossa psique. Desta forma, é um fato genérico e bem conhecido que todos os seres humanos tem um coração, ou um cérebro, apesar de cada coração e cada cérebro serem estruturas singulares, únicas. Jung observou que todos, de fato, não somos tabulas rasas no que se refere a psyché, mas possuímos estruturas básicas que se manifestam através de símbolos, de acordo com o contexto da época ou de nossa singularidade. Nessa perspectiva a própria ciência seria um modelo de interpretação e observação dos fenômenos, não podendo, no entanto, reivindicar para si o critério de validade única ou absoluta.
Através do estudo dos tipos psicológicos, Jung pode observar como diferentes indivíduos, com seus diferentes tipos psicológicos, tinham diferentes modos de relação com o mundo. Esse estudo abriu margem à multiplicidade de analises da psique humana, já que esta se viu em demasia complexa para que apenas uma escola pudesse compreendê-la em sua totalidade. Segundo Melo: “Epistemologicamente, C.G. Jung foi contrario a idéia de fundar uma escola hegemônica em psicologia (1981a; cf. Franz, 1980). Defendia a complexidade do psiquismo e a multiplicidade de facetas deste, descreveu a necessidade de convivência co-disciplinar psicológica entre Adler e Freud, tentando incluir em um só modelo as motivações humanas descritas pelos autores.” (Melo, 2002).
O problema dos tipos psicológicos foi um problema, em grande parte, epistemológico. Nenhum dos tipos, na verdade, pode reivindicar para si todo critério de verdade, pois incorreria, desta forma, a uma interpretação unilateral dos fenômenos, rechaçando apenas uma das possibilidades de se relacionar com o mundo, ou com a alma. Jung diz que “A idéia da uniformidade das psiques conscientes é uma quimera acadêmica que facilita a tarefa do professor diante de seus alunos, mas que desmoronou diante da realidade” (Jung, 1991)
Essa observação pode vir-a-ser a partir do momento em que a psique deixa de ser compreendida como um mero epifenomeno do mundo externo, do mundo “material” e passa a ter uma autonomia relativa e tanta validade quanto o mundo objetivo, senão mais. Na verdade “O imaginário humano possui uma historia, uma estrutura anterior que foi assim estruturada por todas as experiências vividas pelo homem”.(Melo, 2002). Jung então estudou os mitos e pode observar de que modo independente de época, local, contexto todas as civilizações apresentavam estruturas idênticas, ou seja, a base dos mitos é a mesma diferindo a partir daí na suas manifestações históricas e contextualizadas. Por exemplo, toda civilização possui heróis, possui um mito cosmogonico, etc., entre outros símbolos freqüentes podemos destacar o “puer aeternus” (eterno jovem), a sombra, animus e anima. Este estudo antropológico, contudo, não foi feito ao acaso, e sim a partir do momento que Jung percebeu que esses mitos se repetem na história e mito individuais de cada ser humano, aparecendo em símbolos dinâmicos e teleológicos, por exemplo, nos sonhos.
Os mitos são, portanto, não simplesmente uma explicação para o sentido do mundo, mas apresentam a própria alma humana manifestada através de símbolos (do chinês sym + bailen que significa a união de duas metades opostas de uma moeda). Desse modo o estudo da mitologia é também um estudo da própria natureza humana, da própria psicologia. Jung então dirá: "A psicologia analítica faz parte essencial das ciências da natureza; entretanto, está submetida mais do que qualquer outra aos preconceitos e condicionamentos pessoas do observador. É por isso que, a fim de evitar erros mais grosseiros, ela depende, no mais alto grau, da documentação e comparação históricas". (Jung, 2005: 177).
Quando falamos dos protótipos do herói, do mito cosmogonico e de outros falávamos do que Jung chamou de arquétipos e é ai que gostaríamos de mostrar que o arquétipo “é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação. O que é herdado não são as idéias, mas as formas, as quais sob esse particular correspondem aos instintos igualmente determinados em sua forma. Provar a essência dos arquétipos em si é uma possibilidade tão remota quanto a de provar a dos instintos, enquanto os mesmos não são postos em ação in concreto.” (Jung, 2006: 91). Eles foram observados então de vasto material empírico e não tirados simplesmente de conclusão a partir de uma lógica personalista ou aritmética. Jung então explora os métodos a partir dos quais conhecemos os arquétipos e seu sentido: “Não há substitutivo ‘racional’ para o arquétipo, como também não há para o cerebelo ou os rins. Podemos examinar órgãos somáticos anatomicamente, histologicamente e embriologicamente. Isto corresponderia à descrição fenomenológica arquetípica e à apresentação da mesma em termos histórico-comparativos. O sentido de um órgão somático só pode ser obtido a partir do questionamento teleológico” (ibid: 162).
O ato de conhecer do ser humano está, logo, limitado existencialmente a certos padrões mesmo que possua uma infinidade de possibilidades de manifestação e, de fato, é isso que acontece. A psique humana é dinâmica, viva, e por tal a sua própria paralisação pode vir a se tornar uma neurose, pois o Eu não tem total autonomia sobre a psique total do ser humano e quando o ego se mantém de maneira unilateral ele correrá o risco de uma dissociação, pois ignora o inconsciente.
Freud já havia observado que o inconsciente continua ativo mesmo quando a psique consciente não o percebe, e pode, apesar deste desconhecimento consciente, continuar a influenciar nossas vidas de maneira como acontecia com as famosas histéricas de Salpêtrière. Todavia, Freud manteve-se preso ao próprio Eu e as suas internalizações ao analisar a psique além de criar uma eterna dicotomia homem natureza manifesta no seu sistema topológico: “Id x Superego”. Temos que ter a consciência inicialmente de que o homem é homús, isto é, terra fértil, ou seja, o homem provem da própria natureza e por tal está intrinsecamente ligado a ela. A natureza não é simplesmente degradação e desgraça, algo que no máximo temos que aprendera lidar, mas a natureza é também a eterna criação, a fonte do devir.
Bem, essa é uma introdução altamente capenga e que ainda foge do assunto algumas vezes, mas espero que possa ajudar a quem se interessar no assunto e se alguém quiser podemos discutir qualquer assunto ai. Beijos e abraços!
Bibliografia:
Bicalho, Pedro. O Cárcere da Razão: o aprisionamento de sambistas no universo cartesiano. 1998.
Cardoso, H. O que você deve saber para entender Jung – 1. Fundamentos do pensamento junguiano. 2002
Jung, C. G., Memórias, Sonhos e reflexões. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2005 (2003). (1957-1960)
Jung, C. G., Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes. 2006
Jung, C. G., Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes. 1991 (1920-1)
Mello, E. Origem e Totalidade. 2002
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Ae Fernando. Sem querer esbarro com seu texto. Muito bom!
Postar um comentário