segunda-feira, janeiro 30, 2006

Convergência Anarquista
– da dialética e da contextualização contemporânea


O caminho para o anarquismo não pode se prender a apenas um aspecto seja ele material ou psíquico, caso queira uma mudança real e duradoura. Através deste texto tentarei abrir margem a discussões que procurem a integração de diferentes modos de pensamento, pratica e teoria entre o chamado anarquismo histórico e o que poderíamos chamar de anarquismo ontológico¹ (“kairotico”²) para criar uma sinergia dentro do anarquismo que possa estar compromissado tanto com diferentes tipos psicológicos, como diferentes realidades empíricas.
Primeiramente creio fazer necessário uma contextualização do anarquismo nos tempos modernos, sem a perca do que constitui o anarquismo como anarquismo, a saber, o fim do estado, do governo, como nos diz a etimologia an (não, sem) e archos (governador). Neste ponto, o anarquismo clássico ou histórico é fundamental, pois pode constituir uma meta razoavelmente estruturada, um objetivo delimitado em bases objetivas, lógicas e causais utilizando-se das idéias de igualdade, autogestão, solidariedade e liberdade. Saindo tanto dos ditames do liberalismo - da ditadura do capital, que necessariamente é dominadora - como da ditadura vermelha, castradora e autoritária por si só.
Após alguns sucessos e fracassos dentro da historia, devemos pensar os motivos que levaram o anarquismo a não se concretizar como segmento autônomo, perdendo espaço em algumas oportunidades revolucionarias a idéias totalitárias, como o comunismo autoritário ou o capitalismo de estado. Não deixando de ignorar os motivos históricos objetivos, tal como os ataques externos na guerra civil espanhola e os ataques comunistas aos exércitos makhnovistas, temos, sobretudo, que adentrar a influencia psicológica que resultou, em muitos lugares, numa mudança radical da postura anarquista e anti-autoritária para a organização vertical e hierárquica.
Acredito que o próprio ser humano e a humanidade em geral no seu cotidiano é culpada pelas atrocidades cometidas pelo autoritarismo e pelas condutas egocêntricas dos indivíduos que, “representando” a ideologia burguesa ou a ideologia proletária, cometeram as maiores barbáries, sem ética ou consciência. É necessário que busquemos a parte da culpa que é nossa por direito. Penso que os movimentos revolucionários do século XIX e XX foram muito importantes historicamente, mas que seria importante, através de suas experiências e dos nossos conhecimentos atuais, podermos re-significar nosso modelo de pensamento. Temos que caminhar rumo a uma alma mais autônoma que possibilite uma maior compreensão acerca do que fazemos, sentimos e pensamos, para não sermos dominados por nossos complexos inconscientes e bárbaros. É necessário que conheçamos esses complexos, pois, é através da energia que eles nos usurpam, que poderemos ter energia o bastante para dissolver a necessidade de um ente paternalista como o estado e como as autoridades, sejam elas eclesiásticas ou patronais.
Exatamente por termos que conhecer o ser humano, tal como ele é, que devemos abandonar a compreensão de John Locke, da tabula rasa, que pensa o ser humano como um objeto do meio social, onde nascendo sem nenhuma influencia inata, passa a ser total produto do meio; tal como, também não nos parece interessante a posição humanista, e de Rousseau, – que influenciou muitos anarquistas, como Kropotkin – que pensa o ser humano como essencialmente bom, onde seria apenas corrompido pelo meio. Esse ignorar nosso próprio lado “maléfico”, ou possivelmente maléfico, torna-se um problema, pois a repressão tanto social, quanto psíquica, nunca resolveu nenhum problema, apenas o agrava, não deixando de ser uma auto-renuncia de nos mesmos. Reprimindo um lado da nossa personalidade, ao invés de conhecê-lo e modificá-lo, ou vivenciá-lo, tornamo-lo ainda mais forte, permitindo que ele passe a possuir uma certa autonomia sobre nos mesmos. Na psicologia chamamos esse fenômeno, que não aceitamos, de Sombra; a sombra pode inclusive ser projetada sobre os outros, de modo que impede-nos de um relacionamento autentico, ou, de conhecer nossa própria sombra, pois sempre é o outro o culpado dos nossos problemas, como cita Von Franz no livro: “O homem e seus símbolos”: “A sombra só se torna hostil quando é ignorada ou incompreendida”.
Se quisermos fugir do autoritarismo, precisamos sobretudo, fugir da própria ideologia ou dos condicionamentos que moldam nossa consciência, estabelecendo determinados padrões de conduta e percepção aos quais nos captamos, seja da realidade “sensível” ou da realidade psíquica. Esta “consciência coletiva”, produto da ideologia dominante, que se passa, por exemplo, através da mídia, não permite que entendamos a nos mesmos. Somos alienados de nossos conteúdos mais próprios, tanto pessoais como coletivos. Somos alienados, e nos alienamos, justamente por nos adaptarmos totalmente ao meio, aos objetos, deixando de ser uma individualidade para ser passividade.
Essa consciência coletiva, que se cria, é chamada no misticismo de egrégora. Na física os fenômenos onde as partículas saem da virtualidade (potencialidade ou potentia) e se estabelecem em um ponto especifico, no espaço-tempo, saindo da superposição coerente (a própria virtualidade, o caos) é chamado de colapso da função de onda³. Fazendo uma analogia, poderíamos dizer que no momento onde a idéia sai do “caos”, onde tudo ainda é indiferenciado e inconsciente, e se torna uma idéia consciente (“colapso da função de onda”), ela vai desde ai ser influenciada pelos padrões ideológicos preponderantes em nossa sociedade e, dessa forma, há um impedimento de que novas idéias subversivas sejam adotadas. Não há repressão propriamente dita, existe antes uma diminuição da capacidade de criação, de criatividade. É necessário que, em certo momento, possamos deixar qualquer tipo de regra e norma para criar e também para chegarmos ao nosso si-mesmo, pois “tat twain asi” (isto é você), em outras palavras, chegar ao que somos (não como fossemos sempre os mesmos por trás da forma, mas a nossa singularidade que é móvel, por ser uma complementaridade entre consciência e inconsciência). Para tal, temos que abandonar nossos pré-conceitos e a unilateralidade de nossa percepção, seja ela racional (pensamento e sentimento) ou “irracional” (intuição e sensação), e chegar ao que os hindus chamavam de tapas, que é uma espécie de estado de “auto-incubação”, onde introverte-se, não para ter contato com o pensamento, mas com a imaginação, e através dela podem surgir os símbolos que nos permitem integrar e congruir aspectos opostos de nossa psique.
A transmutação do ser e da cosmovisao dominante são imperativos essenciais para o anarquismo dar conta da realidade a qual visa estar construindo, não necessitando que suas revoluções sejam temporárias e o sucesso se estabeleça apenas em exercer “sua” vontade de potencia, mas que também não fique apenas no lado paternalista representado por Zeus, ou maternalista representado por Demeter, que foi na mitologia grega uma “protetora das criaturas jovens e indefesas”. Justamente esta transmutação do ser da ao individuo a possibilidade de estabelecer para si uma ética que possa estar, até mesmo, em contraponto a sociedade, quando assim for necessário, chegando a sua própria Vontade, ou a seu próprio ser, que jaz no seu mais intimo e profundo inconsciente.
Era exatamente no ponto da união de opostos (conjuctio oppositorum) ao qual eu gostaria de chegar. Se por um lado o anarquismo histórico sofreu criticas ao seu altruísmo, por Nietzsche - pela sua coletividade homogênea, que em alguns momentos históricos foi próxima a do marxismo - e aproximou-se de um altruísmo que em alguns momentos foi similar ao cristão; por outro o anarquismo ontológico corre o perigo de perder o próprio amor e responsabilidade social e ser dominado pela necessidade de poder, desligando-se de qualquer pretensão de melhoria social, ignorando a realidade coletiva na qual está inserido, perpetuando um individualismo pouco produtivo (ou pela sua própria introversão característica, abstrair-se totalmente da realidade objetiva).
Precisamos então unir ao anarquismo histórico a potencia (palavra distinta de poder) e a imaginação, e ao anarquismo ontológico a necessidade da coletividade, do altruísmo e da modificação social e econômica. Juntando a racionalidade a irracionalidade, teremos a chance de não ignorar o inconsciente coletivo tal como, também, não ignoraremos a realidade do cotidiano que se mostra e se desvela (alethéia) no mundo e em nossas relações. Necessário é, portanto, viver o anarquismo no cotidiano, se mutando, procurando nossa própria singularidade (e nesse ponto, as zonas autônomas temporárias de Bey podem ser um grande avanço), e também se organizando para manter a lógica, a estratégia e uma autodisciplina para que possamos ter bons resultados intersubjetivos de modificação do cotidiano, começando e incluindo, obviamente, a nos mesmos.



¹ - Dentro do anarquismo ontológico, termo cunhado por Hakim Bey, eu considero também as antigas vertentes gnosticas antiautoritárias.
Por Anarquismo Ontológico, entendo um anarquismo que vai lidar com o “discurso do ser anarquista”, ou seja, com a tentativa de resgate da essência anárquica dentro do individuo, seja uma essência metafísica ou psicológica (que não necessite do estado como repressor da singularidade). Um exemplo de pratica do anarquismo ontológico contemporâneo seria o chamado Terrorismo Poético, que Hackim Bey entende como ”ações não-violentas em larga escala que podem ter um impacto psicológico comparável ao poder de um ato terrorista - com a diferença de que o ato é de mudança de consciência (...)”. O anarquismo ontológico vai estar voltado, sobretudo, para o momento presente ao invés de idealizar uma sociedade futura, como cita Bey: “Dizer ‘só serei livre quando todos os seres humanos (ou todas as criaturas sensíveis) forem livres’, é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados”. E, como citei no inicio, este modo de anarquismo vai lidar com a psique, onde “O ataque é feito às estruturas de controle, essencialmente às idéias”.

² - Kairotico se refere ao tempo mítico (ou não-linear, pode ser representado através do circulo, ver também o tempo do matemático Kurt Godel) o qual os gregos diferiam do tempo cronológico, ou seja, histórico. Dessa forma a divisão entre anarquismo histórico e kairotico se justifica enquanto unidades distintas dentro do campo do anarquismo.

³ - http://pub14.bravenet.com/faq/show.php?usernum=1175349607&catid=4851#q9 (aqui encontra-se uma luz sobre o conceito de superposição coerente.

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