domingo, maio 07, 2006


A Clara Torre

André Breton
Le Libertaire, 11 de janeiro de 1952

Foi no negro espelho do anarquismo que o surrealismo reconheceu-se pela primeira vez, bem antes de definir-se a si mesmo e quando era apenas associação livre entre indivíduos, rejeitando espontaneamente e em bloco as opressões sociais e morais de seu tempo. Entre as fontes de inspiração onde bebíamos, nesse pós-guerra de 1914, e cuja força de convergência era inabalável, figurava esta final da “Balada de Solness”, de Laurent Tailhade:

Arrebata nossos corações em disparada, em farrapos
Anarquia! Ó portadora de luz!
Expulsa a noite! Esmaga os vermes!
E ergue ao céu, ainda que seja com nossos túmulos,
A clara torre que sobre o mar domina!

Nesse momento, a recusa surrealista é total,, absolutamente inapta a deixar-se canalizar no plano político. Todas as instituições sobre as quais repousa o mundo moderno e que acabam de resultar na Primeira Guerra Mundial são tidas por nós como aberrantes e escandalosas. Para começar, é contra todo aparelho de defesa da sociedade que lutamos: exercito, “justiça”, policia, religião, medicina mental e legal, ensino escolar. Tanto as declarações coletivas quanto os textos individuais do Aragon do passado, de Artaud, Crevel, Desnos, do Eluard de outrora, de Ernst, Leiris, Masson, Péret, Queneau os meus, atenstam a vontade comum de fazer com que fossem reconhecidos como flagelos e, como tais, combatidos. Todavia, para combatê-los com alguma chance de sucesso, ainda é preciso atacar sua armadura que, em última analise, é de ordem lógica e moral: a pretensa “razão’ em uso, e de uma etiqueta fraudulenta, recobre o “senso comum” mais desgastado, a “moral” falseada pelo cristianismo com o objetivo de desencorajar qualquer resistência contra a exploração do homem.
Um grande fogo conservava-se sob as cinza – éramos jovens – e creio que devemos insistir no fato de que ele avivou-se constantemente para liberar-se da obra e da vida dos poetas:

Anarquia! Ó portadora de luz!

Chama-se não mais Tailhade, mas Baudelaire, Rimbaud, Jarry, que todos os nosso jovens camaradas libertários deveriam conhecer, assim como deveriam também conhecer Sade, Lautréamont, o Schwob do Livro de Monelle.
Porque uma fusão orgânica não pôde operar-se nesse momento entre os elementos anarquistas, propriamente ditos, e elementos surrealistas? Ainda estou, vinte e cinco anos depois a perguntar-me. Não resta dúvida de que a idéia da eficácia que terá sido o espelho de toda essa época decidiu de outra forma. O que se pode considerar como o triunfo da Revolução Russa e a realização de um Estado operário provocava uma grande mudança de visão. A única sombra do quadro – que se precisaria como mancha indelével – residia no esmagamento da insurreição de Kronstradt, em 18 de março de 1921. Nunca os surrealistas conseguiram passar por cima disso. Entretanto, por volta de 1925, só a III internacional parecia dispor dos meios desejados para transformar o mundo. Poder-se-ia crer que os sinais de degenerescência e regressão, já facilmente observáveis no Leste, ainda eram conjuráveis. Os surrealistas viveram, então, na convicção de que a revolução social estendida a todos os paises não podia deixar de promover um mundo libertário (alguns diziam, um mundo surrealista, mas é a mesma coisa). Todos, inicialmente, julgaram dessa forma, inclusive aqueles (Aragon, Eluard, etc) que, em seguida, decaíram de seu ideal primeiro até o ponto de fazer no stalinismo uma carreira invejável (aos olhos dos homens de negócios). Mas o desejo e a esperança humanos jamais poderiam estar à mercê daqueles que traem:

Expulsa a noite! Esmaga os vermes!

Sabe-se muito bem que impiedosa pilhagem foi feita dessas ilusões durante o segundo quartel deste século. Por uma terrível ironia, ao mundo libertário com o qual se sonhava, substituindo-se um mundo onde a mais servil obediência é obrigatória, onde os direitos mais elementares são negados ao homem, onde toda a vida social gira em torno do policial e do carrasco. Como em todos os casos em que um ideal humano chega a esse cumulo de corrupção, o único remédio é refortalecer-se na grande corrente sensível onde se originou, remontar aos princípios que lhe permitiram constituir-se. É no próprio fim desse movimento, hoje, mais do que nunca necessário, que se encontrará o anarquismo, somente ele – não mais a caricatura que nos apresentavam ou a coisa hedionda que fazem dele – mas aquele que nosso camarada Fontenis descreve “como o próprio socialismo, isto é, essa reivindicação moderna pela dignidade do homem (sua liberdade tanto quanto seu bem-estar); o socialismo, concebido não como a simples resolução de um problema econômico ou político, mas como a expressão das massas exploradas em seu desejo de criar uma sociedade sem classes, sem Estado, onde todos os valores e aspirações humanos possam se realizar”.
Essa concepção de uma revolta e de uma generosidade indissociáveis uma da outra, e, a despeita de Albert Camus, ilimitáveis tanto uma quanto a outra, os surrealistas a fazem sua, hoje, sem reservas. Liberada das brumas de morte destes tempos, eles a consideram como a única capaz de fazer ressurgir a olhos cada vez mais numerosos,

A clara Torre que sobre o mar domina!

Fonte: Surrealismo e Anarquismo, Imaginário.

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