segunda-feira, junho 19, 2006

Ética em Aristóteles, Ethos e Ética na modernidade.


A palavra ética etimologicamente provém do grego ethos – εθος que significa “morada, casa”, ou ainda, morada do ser humano (Veríssimo). Boff ainda aponta, seguindo essa linha de raciocínio, o significado: “toca do animal” provindo da palavra grega ethos. Ampliando suas significações podemos dizer que ethos é o “conjunto de princípios que regem, transculturalmente, o comportamento humano para que seja realmente humano no sentido de ser consciente, livre e responsável” (Boff, 1999: 195). De fato, o ethos não significa um a priori no ser humano e sim uma construção através da práxis, dos atos praticados por este. Veríssimo então conceitua que ethos é um costume, habito não natural, mas adquirido, sendo portanto “Comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. (...) O ethos, nesse caso, denota uma constância no agir (hábito) que se contrapõe ao impulso do desejo (impulso natural)” (Erbolato apud Veríssimo).

Ethos, portanto, significa o cuidado com a totalidade (holos) do nosso planeta e nossas relações, com nossa casa (oikos) não permitindo que ela seja destruída. Estar na ética a partir desse prisma significa, citando um alquimista alienado em seu contexto, compreender a frase “Quod natura reliquit imperfectum, ars percifit” (O que a natureza deixa imperfeito, a arte aperfeiçoa).

Retomando a cultura do cuidado e “construindo uma casa que todos nela possam caber” (Boff, 1999: 27), possibilitando um desenvolvimento sustentável estamos retomando esse significado essencial da ética para com o planeta. Também a ética está intimamente ligada ao nosso contato com outros seres humanos, trazendo o zelo e a atenção pelo outro. Como dizia Marin Heidegger (1889-1976): “Do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato” (Heidegger apud Boff: 34), ou seja, o cuidado é um modo essencial do ser e não uma conseqüência. É um modo ontológico. Esse modo de cuidado já havia sido observado antes de Heidegger embora com um ponto de vista evolutivo por Darwin (1809- 1882) e antes desse pelo anarquista e geógrafo Peter Kropotkin (1842- 1912) conforme observa George Woodcock (história das idéias e movimentos anarquistas v.1).

A ética teve uma força muito grande entre os antigos gregos, não é por menos que o termo ethos proveio de Heráclito de Efeso (filosofo pré-socrático). Aristóteles, por exemplo, dava excessiva responsabilidade ao homem ao afirmar: “O homem é um animal político” (zoon politikos) reforçando além de sua postura animal que o “homem é um animal racional” e está intimamente ligado ao destino da Polis (cidade). O bem que o homem procura é o bem comum.

Aristóteles afirmava que existia uma variação incrível de “bens”, mas que, todavia, o bem supremo, ou per si, era a felicidade. Aristóteles em Ética e Nicômaco I,2 diz: “Existe, no entanto, no que fazemos, um fim, um bem, uma realização que desejamos não em vista de algo que lhe seja hierarquicamente mais importante. E sim, o fim último, a finalidade máxima, uma realização desejada que possui o maior valor para nós, ou seja, para todos os seres humanos. E que, a partir dela, todo o que seja desejado seja em função dela” (Aristóteles apud Veríssimo) e afirma este sumo bem (summum bonum) “A felicidade, a consideramos a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. (...) A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação” (ibid: I, 7).

Fatalmente em nossa época, hoje chamada pós-moderna ou de capitalismo tardio, entendemos felicidade como algo relacionado ao Eu, em especial as sensações. Vivemos em uma época individualista onde: “A indiferença pura designa a apoteose do temporário e do sincretismo individualista” (Lipovetsky, 1983: 39). Nesta época o conceito de felicidade se prolifera de maneira polimorfa, numa atomização sem fim, parece haver uma especial ênfase na felicidade através do consumo, onde “Ser feliz” é “Ter objetos”, ter carros, imóveis, mulheres ou homens-objeto, em suma, coisas não-vivas que são associadas através da sedução da mídia a “modos de ser” , como consumindo um cigarro a pessoa passa a “ser” radical, ser um grande esportista, e outros paradoxos análogos.

O paradigma vivenciado hoje nos parece um individualismo radical como de Max Stirner, o pensador alemão que pensou a tese do “Einzige” (único) que cresce e se expande a medida em que possui. O único movimenta-se a medida em que utiliza as coisas ao seu propósito, ou seja, tomando-as como sua propriedade privada. De tal modo a única realidade valida para ele, tal como a única felicidade, seria a felicidade de sua volição, de sua vontade.

A felicidade em Aristóteles, a qual falamos, passa a distancia desta felicidade “hedonista” à qual nos reportamos na “pós-modernidade”. A felicidade para Aristóteles é “um bem desejável em si mesmo em que não requisita nada mais” (Veríssimo), o homem para Aristóteles “nasceu para a cidadania” (Aristóteles apud Verissimo), e logo visa o bem comum.

Aristóteles já atentava que o senso comum (aquele ao qual não reflete) já não compreendia o sentido da felicidade, pois achava que esta se fazia no sucesso e na vida bem regrada (i. e). Ele então observa que: “(..) uma vida dedicada aos prazeres torna os homens ‘semelhantes aos escravos’ e é uma existência digna de animais” (ibid, I, 5), e ainda acrescenta que o senso comum muitas vezes vê a felicidade como riqueza, onde: “a vida dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsão” (ibid) e nas pessoas bem situadas socialmente a felicidade centra-se sobre suas honras e por tal, não alcançariam a felicidade, pois: “A honra depende mais de quem a confere do que de quem a recebe, enquanto o bem supremo nos parece ser algo (...) que dificilmente pode ser arrebatado” (ibid, I, 4).

As semelhanças do senso comum da época de Aristóteles com a nossa obviamente são inúmeras. Na cultura onde o narcisismo impera a todo o momento se inclina a compulsão, na ávida necessidade de possuir. Para Aristóteles, contudo, era a virtude (arete) que nos levava à felicidade. Aqui temos ainda que tentar desvelar o que Aristóteles queria dizer com virtude. Ele nos diz: “O sucesso e o fracasso na vida não dependem dos favores da fortuna, mas a vida humana, como dissemos, também deve contar com eles; na realidade são nossas atividades conformes à virtude que nos levam à felicidade, e as atividades contrárias nos levam à situação oposta” (ibid: I, 10).

Ao homem, através da razão, é possível agir com virtude, pois para atingir o bem comum “ele tem que agir com razão. Então tem que ser uma racionalidade que integre pensamento + vontade (de realizar o bem através da ação)” (Reale apud Veríssimo) e finalmente “Dessa forma o bem do homem como excelência nada mais é do que a virtude, pois a virtude é a melhor e mais completa excelência, o mais completo bem” (ibid). Ampliando o sentido de virtude encontraremos ainda a outra forma de apresentá-la, ela é “uma mediania entre os extremos que são a falta e o excesso” (Veríssimo). Ela rompe com os extremos, com as atitude unilaterais às quais podemos tomar, pois, como diria Nietzsche somos o “humano, demasiado humano”. A virtude nos parece como o lugar onde “O sujeito, ao romper com a repetição inerente aos complexos infantis, ruma para o livre arbítrio” (Melo, 2002).

Sabemos que esta posição de mediania que caracteriza a virtude “(..)não é um ponto matemático” (Aristóteles apud Veríssimo, II, 6) pois pertence a práxis, a prática e não simplesmente a abstrações, por tal, a virtude é em essência uma sabedoria prática. Para alcançar a virtude é preciso “o desenvolvimento da moderação (mediania) entre o medo e a violência incontida” onde “O desenvolvimento se dá pelo exercício” (ibid). Segundo Aristóteles “É possível errar de muitos modos (...), mas só há uma maneira de acertar. Por isso, errar é fácil e acertar é difícil – fácil errar a mira, difícil acertar o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso e a falta são características do vício, e a mediania a virtude: Pois os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos”. (ibid: II, 6).

Conclui-se que se, por um lado, a felicidade e a ética são tomados por um modelo sustentado pelo egoísmo e pela cobiça des-medida, por outro, a ética Aristotélica é a busca por um bem comum, por um bem que resultará uma melhoria social, à Polis. É o encontro com a mediania que só pode ser encontrada através da práxis, saindo dos extremos que seriam compulsivos e estariam no âmbito da falta de liberdade. Concluir-se-á, logo, que o ethos é uma busca por, com-paixão, cuidar de nosso planeta e dos seres humanos que nele habitam.

"Quando batemos com uma mão de encontro à outra ouvimos um som. Qual é o som produzido por uma só?” (Introdução ao Zen-Budismo: 37. Sukuzi).

Bibliografia:

Boff, Leonardo; Saber Cuidar, ética do humano - compaixão pela terra. Ed. Vozes, 1999.
Lipovetsky, Gilles; A Era do Vazio. Ed. Gallimard, 1983.
Melo, Elizabeth; Mergulhando Num Mar Sem Fundo, 2002.
Veríssimo, Luis; Introdução ao estudo da ética
Veríssimo, Luis; Aristóteles – Ética e Nicômaco

Um comentário:

Victor disse...

Belo texto.

Mais um blog adicionado aos meus favoritos, lamento ter descoberto ele tão tarde. Fique certo que o lerei com mais freqüência a partir de hoje.

abraços.