segunda-feira, março 13, 2006



Anarquismo e religião

O anarquismo, em seu período mais turbulento e ativo, no final do século XIX e inicio do século XX, levou uma critica importante contra as instituições religiosas ocidentais, as relações entre as pessoas e Deus – Deus, segundo a teoria crista, bom ressaltar -, e ao próprio conceito de Deus. Cabe a nos, em pleno século XXI, escutar essa critica de maneira a observar de que modo ela esta ligada a seu próprio tempo, suas intenções, sua validade na sua época especifica e nos nossos tempos.

De fato, desde aquele período, o cristianismo em termos de poder, decresceu, contudo, ainda vive com uma força absurda em nossa sociedade ocidental (cristianismo aqui entendido como a parte institucionalizada do mesmo). Ainda é constante vermos a antiga atitude de lidar com Deus de uma maneira passiva, de modo a projetar toda as causas de benefícios e malefícios acontecidos em suas mãos, renegando inclusive nossa própria responsabilidade nas mãos dos desígnios divinos, um exemplo clássico seriam as frases: “Por que Deus esta me punindo?” ou “Por que Deus quis assim?”. Sartre, por exemplo, chamava essa atitude de não assumir as responsabilidades por nossas ações de má fé. Se considerarmos que os desígnios divinos eram as interpretações do poder eclesiástico sobre a bíblia, poderemos compreender melhor a insubmissão anarquista, já que, de maneira nítida, o poder clerical estava intimamente ligado ao poder político e hierárquico da sociedade da época.

Se a critica anarquista atentou, em sua observação, para o modo em que a religião usurpava o poder popular e reprimia as revoltas, autonomias e insatisfações, temos que observar que em muitos casos existiram religiosos que tiveram outra relação, tanto com Deus, quanto com a sociedade, de maneira a não propagar a onda hierárquica e totalitária. O próprio Kropotkin, anarquista que reverenciou a ciência clássica, fez suas observações sobre alguns desses religiosos, quando diz:

“Na Boêmia teve o nome de movimento hussita; e de anabatista, na Alemanha, na Suíça e nos Países Baixos. Pode-se afirmar que estes movimentos, além de constituírem uma revolta contra o senhor, tinham uma outra característica: a revolta completa contra o Estado e contra a Igreja, contra o direito romano e contra o direito canônico, em nome do cristianismo primitivo”¹.

Estes movimentos tiveram origem de movimentos gnósticos antiautoritários (contemporâneo do cristianismo que teve seu “auge” por volta do séc II d.C) que podem ser inclusive, segundo uma interpretação, um proto-anarquismo. A critica dos anarquistas aos religiosos estava calcada, sobretudo, sob a égide do movimento positivista e de tal forma esteve incluída em seu tempo que não observou as alternativas que a própria religião demonstrou durante toda sua existência. Desde as palavras de Jesus, contidas em Salmo: “Sois deuses” como as palavras de São Paulo onde diz que: “a graça eleva o homem acima das leis deste mundo”², poderiam e levaram a interpretações contra as autoridades ctônicas tais como os governantes, o estado e as leis constituídas. Os anarquistas em seu contexto não observaram as possibilidades também revolucionarias (apesar de trabalhar mais com a subjetividade, ou com aspectos ontológicos) dos movimentos religiosos, místicos ou congêneres.

O gnosticismo valeriano, por exemplo, tinha um sistema de crenças que tentava romper com o que eles chamaram de estado de sistase. A sistase seria um limitador da nossa potencialidade divina (do espírito, das partículas divinas, ou atmás) que foi presa pelo Demiurgo, um anjo ou deus criado em todo processo ocorrido na queda de Sofia (outra divindade gnóstica) e que sem o saber inibia o ser humano ao contato com o pleroma, a realidade verdadeira, para os gnósticos (encontrada na câmera nupcial, que pode ser mais bem descrita pelo evangelho de Felipe); inibia, sobretudo, o ser humano de entrar em contato com suas forças originarias, deixando-o preso então no kerona (do gr. kenósis- esvaziamento). Essa singularidade oculta era protegida por sete arcontes, demônios de demiurgo e eram materializados nas figuras dos governantes. Esse jogo de deuses e demônios eram, em maior parte, para o gnosticismo, símbolos ou alegorias.

Cabe a nos, hoje, tentar permitir essa liberdade de crença de modo a não criar um dogma ateu que arbitrariamente limite a crença dos indivíduos. Sem deixar de observar, contudo, as criticas anarquista as instituições verticais, tais como a igreja, que todo o momento tenta servir de mediador entre a população e a divindade forjando uma única interpretação de todas as escrituras consideradas como sagradas, alienando a população, dessa forma, de sua autonomia. Como diz Kropotkin sobre Denck (anabatista):

“...quando perguntaram a Denck, um dos filósofos do movimento anabatista, se reconhecia a autoridade da Bíblia, ele respondeu que somente a regra de conduta que um indivíduo encontra, para si, nessa mesma Bíblia, é que constitui a obrigação da sua consciência.”

A existência de religiões que, não só não renegam, como apóiam um modo de ser autônomo e uma sociedade que busque tal autonomia antiestatal, mostram a pluralidade de intenções dentro do mundo religioso, desde as mais dominadoras ate as mais libertarias. Dever-se-ia, portanto, creditar esta liberdade de crença e em especial, compreender que não existe ligação intrínseca entre autoritarismo, centralismo e religião ou mística.

¹ - http://www.magianarq.blogspot.com/#_ftn2

² - op.cit.

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