sexta-feira, março 17, 2006

Fernando Pessoas



Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variavelmente outro do que um eu que não sei se existe (se é esse outros).
Sinto crenças que não tenho. Elevam-me ânsias que repudio. A minha perpetua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas em uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente arvore (?) e até flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada (?), por uma soma de não eus sintetizados num eu postiço.
Sê plural como o universo!

Fernando Pessoa (Obras em Prosa).

--

Contemplo o que não vejo

Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

--


Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo.
Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir?
Sinta quem lê!


----

Outros terão

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.
A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real.
Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.

Nenhum comentário: