quarta-feira, março 08, 2006

Histerie et Dementia Praecox

Transcrição da conferencia de Jung em setembro de 1913 no Congresso Psicanalítico de Munique. Pego do livro: Tipos Psicológicos; paginas: 461-464.

A Questão dos Tipos Psicológicos.

Conforme se sabe, se compararmos o aspecto geral da histeria e da dementia praecox (esquizofrenia), saltará aos olhos o contraste de seu relacionamento com o objeto. A histeria tem, normalmente, uma intensidade de relacionamento com o objeto que ultrapassa o normal, enquanto na esquizofrenia o nível normal não é alcançado. No relacionamento pessoal isto se nota pelo fato de se ter, no caso de histeria, uma comunicação a nível do sentimento com o paciente, não ocorrendo o mesmo na esquizofrenia. Não se falará aqui das exceções a esta regra. Também se constata a diferença nas demais sintomatologias das duas doenças. No que se refere aos sintomas intelectuais da histeria, trata-se de imagens fantasiosas, que são humanamente compreensíveis, do histórico anterior do caso individual; na esquizofrenia, porem, as imagens fantasiosas tem um caráter mais relacionado com sonhos do que com a psicologia do estado de vigília. Alem disso, é evidente forte interferência da psicologia da historia dos povos ao invés do material das reminiscências individuais. Os sintomas físicos tão numerosos na histeria, que simulam quadros de doenças orgânicas bem conhecidas e impressionantes, não se encontra no quadro clinico da esquizofrenia. Disso é fácil concluir que a historia se caracteriza por um movimento centrífugo da libido, ao passo que na esquizofrenia o movimento é mais centrípeto. Inversamente, a influencia compensadora da doença constatada na histeria obriga a uma redução do movimento centrípeto da libido, substituindo a vivencia objetiva por sonhar acordado, ficar de cama, internação em sanatório etc. Na fase de incubação, o esquizofrênico que se fechou em si mesmo e se isolou do mundo externo torna-se forte, através da compensação na doença, e é forçado a sair de si procurando atrair a atenção dos outros, por meio de um comportamento intencionalmente extravagante, insuportável e diretamente agressivo.
Chamei extroversão e introversão essas duas direções opostas da libido. Nos casos mórbidos em que idéias delirantes, inspiradas na emotividade, ficções ou interpretações fantásticas adulteram no paciente o juízo de valor sobre os objetos e sobre si mesmo, gostaria de acrescentar o termo regressivo. Falamos de extroversão sempre que o indivíduo volta seu interesse todo para o mundo externo, para o objeto, e lhe confere importância e valor extraordinários. No caso contrario, quando o mundo objetivo fica praticamente na sombra, e pouca atenção recebe, mas o homem se torna o centro de seu próprio interesse e aparece como único a seus olhos, trata-se de introversão. O fenômeno que Freud chama transferência, em que o histérico projeta ilusões e avaliações subjetivas no objeto, eu o denomino extroversão regressiva. Por introversão regressiva entendo o fenômeno inverso, tal como ocorre na esquizofrenia, onde estas representações fantásticas atingem o sujeito.
Não é difícil observar como os dois movimentos da libido podem atuar num mesmo individuo, na qualidade de simples mecanismos alternativos da psique. No mecanismo histérico da extroversão, conforme ensina Freud, a personalidade procura livrar-se do conteúdo doloroso, do complexo, surgindo então fenômenos psíquicos que Freud denominou “repressão”. Nesses casos, o individuo se aferra aos objetos para esquecer e deixar para trás o conteudo doloroso. O mecanismo da introversão, ao contrario, procura concentrar a libido totalmente no complexo, libertando e isolando da realidade a personalidade juntamente com o complexo. Este processo psicológico está vinculado a fenômenos que poderíamos chamar mais apropriadamente pelo nome de “desvalorização” ao invés de “repressão”. Até aqui introversão e extroversão são dois modos psíquicos de reação que podem ser encontrados num único e mesmo individuo. O fato, porem, de dois distúrbios psíquicos tão opostos, como histeria e esquizofrenia, serem caracterizados pela predominância do mecanismo da extroversão ou da introversão, indica que provavelmente também tipos humanos normais sejam caracterizados pela prevalência de um ou outro mecanismo. Assim, por exemplo, é fato bem conhecido do psiquiatra que o esquizofrênico já vinha caracterizado pelo predomínio de seu tipo especifico, bem antes de apresentar-se a doença, e até em sua mais tenra infância.
Como diz Binet, a neurose apenas coloca em relevo excessivo os traços típicos do caráter de uma personalidade. Já sabemos de há muito que o assim chamado caráter histérico não é mero produto da neurose manifesta, mas de certa forma o precede. A mesma conclusão chegou Hoch em suas pesquisas sobre a anamnese esquizofrênica; fala de uma “shut-in-personality” (personalidade fechada em si) que é anterior ao aparecimento da doença. Nestas circunstancias, poderíamos esperar sem mais encontrar os dois tipos também fora da esfera da patologia. Sem pretensão de exaurir a serie de possíveis testemunhos da existência dos dois tipos, gostaria de trazer alguns exemplos.
Na ótica do meu limitado saber, as observações mais pertinentes sobre o assunto devemo-las a William James que parte desta idéia fundamental: “Qualquer que seja o temperamente de um filosofo profissional, ele tenta, ao filosofar, pensar o fato a partir de seu temperamento”¹. Segundo esta concepção, totalmente em consonância com a psicanálise, divide os filósofos em duas classes: “tender-minded” e “tough-minded”. O primeiro termo significa literalmente “de espírito meigo”, o outro, “de espírito inflexível”. Em tradução mais livre, poderíamos dizer “voltado para o espiritual” e “voltado para o material”. Os próprios termos já deixam prever a direção do movimento da libido. A primeira classe dirige a libido para as idéias, é sobretudo introvertida; e a outra dirige a libido para o objeto sensual, a matéria. É extroversiva. James caracteriza o “tender-minded” em primeiro lugar como racionalista “going by principles” (que se orienta por princípios). Para ele, os princípios e sistemas de pensar são determinantes; ele administra a experiência, isto é, coloca-se acima dela e a submete friamente a seus princípios, convicções e conclusões lógicas. Subordina os fatos e a multiplicidade empírica a suas premissas, estranhas ao material, sem deixar-se influenciar ou desconcertar pela experiência. Lembremos, por exemplo, Hegel e sua atitude para com a questão do numero de planetas. No campo da patologia, identificamos esse filosofo como paranóico que procura impor ao mundo sua concepção delirante, não importando que todos os fatos digam o contrario, e tudo “arranja” (Adler) de tal forma a servir a seus sistema preconcebido.
As outras características que James atribui a este tipo são lógica e facilmente deduzidas dessa premissa. O “tender-minded” é intelectual, idealista, otimista, religioso, indeterminista, monista e dogmático. Todos esses atributos deixam facilmente entrever a centralização quase exclusiva no mundo das idéias. A centralização nesse mundo ideal, como mundo interno da personalidade, nada mais é do que introversão predominante. A única função que a experiência tem para esses filósofos é a de servir ao projeto da abstração, a necessidade de colocar em ordem a multiplicidade e desorganização dos acontecimentos que, em ultima analise, devem submeter-se a fator subjetivos-ideais.
O “tough-minded”, ao contrario, é empírico, “going by facts” (orienta-se por fatos). A experiência manda nele, ele a segue e seu pensar é por ela determinado. O que não é fato palpável externamente não conta. Seu pensar é reação a experiência externa. Seus princípios são menos importantes que os fatos; são mais retrato dos acontecimentos, mais descritivos do que constitutivos de um sistema. Por isso suas teorias tendem a ser internamente contraditórias e são muitas vezes turvadas e sufocadas por material empírico em demasia. Para ele, a realidade psíquica se limita a observação e a uma reação de prazer ou desprazer; não vai alem disso, nem procura reconhecer o direito de existir ao postulado filosófico. Da mesma forma que muda a superfície do mundo empírico, o “tough-minded” está sujeito a mudança da experiência. Conhecer múltiplos aspectos e possibilidades teóricas e praticas do mundo e de suas coisas, mas, por isso mesmo, nunca chega a um sistema unificado que pudesse satisfazer ao “tender-minded”. O “tough-minded” é redutivo. Diz muito bem James: “O superior é explicado pelo inferior e sempre tratado como um caso de ‘nada mais do que’ – nada mais do que algo de espécie bem inferior”¹. Os demais atributos elencados por James seguem logicamente as premissas dadas: o “tough-minded” é sensacionalista: dá mais espaço a sensação do que a reflexão. É materialista-pessimista: conhece bem demais a incerteza e o caso desesperançado dos acontecimentos mundiais. É irreligioso: não está em condições de sustentar a realidade do mundo psíquico interno em face do valor dos fatos externos. É determinista e fatalista, pois é resignado. É pluralista, porque incapaz de síntese. E, como conseqüência ultima e necessária, é cético.
O próprio James se exprime de forma tal que se conclui facilmente ser a diversidade dos tipos proveniente de uma diversidade na localização da libido, da “força mágica”. Em contraste com o subjetivismo religioso do solipsista, diz James sobre nossa atitude empírica: “Mas nossa estima pelos fatos... ela própria é quase religiosa. Nosso temperamento cientifico é piedoso”.¹

¹ - Eu, Fernando, não utilizei todas as notas de pagina, contudo, todas se referem ao mesmo livro de William James que Jung cita, a saber: “W.James, Pragmatism, 1911”.

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